quinta-feira, 25 de abril de 2013

Queijos e Vinhos


Choveu a noite inteira. Os planos para o domingo diluíram-se com a tempestade e os cinco amigos ficaram sem saber se o encontro combinado há semanas aconteceria realmente. Não se viam com freqüência. Mas quando acertavam essas ocasiões os momentos juntos eram marcantes. Era apenas uma desculpa para brindarem a presença uns dos outros.
O encontro, como seria? O piquenique no domingo foi decidido em correspondências eletrônicas nas últimas semanas, a única comunicação possível nestes dias de trabalhos e família que exigem urgência. E agora teriam de mudar a decisão.
Está fora de questão para hoje, não é agradável banquetear-se com a grama e a terra molhadas. Ah, pena, um dia perdido. Mas quando se encontrariam novamente? Quando filhos, maridos e teses permitissem. Mas a depender das teses, não seria logo. Seria melhor deixar o encontro para a próxima semana e esperar que o sol os agraciasse com sua presença ou se encontrarem mais tarde, num lugar igualmente acolhedor e celebrarem ainda assim?
Decidiram em breves mensagens coletivas pelo celular que se encontrariam no quartel general, o lugar de sempre: o apartamento do único casal sem filhos do grupo. Um apartamento antigo numa parte tranqüila da cidade que fica numa ruazinha estreita no centro, tem uma sala ampla, um gato recém chegado a se esconder dos visitantes, e algumas garrafas de vinho levadas pelos convidados. Era um banquete e a verdade era também uma das convidadas.
O local foi decidido na última hora, e o horário também. Combinaram às cinco. Chegaram-se todos. Não pontualmente, mas isso é bastante comum nos encontros entre os amigos. Mesmo com alguns atrasos a noite correu bem, como era de se esperar. E por algum tempo as demandas de trabalho concentraram a temática da conversa, mas logo foram adiadas para a segunda-feira essas inconveniências.
O que seria um piquenique no final da manhã se transformou numa noite de banquete divino. E este era um bom momento para esquecer que o domingo já estava terminando e teriam de enfrentar a segunda-feira, agora com mais ânimo, ou quem sabe com uma ressaca – para lembrar-lhes de que, pelo menos, o dia anterior não foi em vão.
As comidinhas e os vinhos regavam esse encontro. O domingo não foi como o planejado, seguiu outro curso. Conversas e risadas desaceleravam a noite que passava e ninguém se dava conta. Ninguém se preocupava naquele momento.  Nenhum deles olhava para o relógio procurando uma desculpa para ir, não pensavam nas horas, na rotina, nas obrigações.
A chuva cessou, mas ainda não dava espaço para o luar. Os amigos chegaram-se aos poucos até a varanda. As folhas das plantas ainda pingavam, tinha cheiro de coisa nova e terra molhada. Sentaram-se na varanda. Ficaram ali a observar a rua e o asfalto ainda molhado, foram envolvidos por uma leve corrente de frio. O abraço suave do orvalho, as bochechas quentes, os lábios rosados, tudo isso os envolvia.
Não precisavam dizer tudo, dizer o quanto que se amavam, estavam ali somente, eram os melhores amigos brindando à vida e ao amor. Falavam sobre o tempo. As vozes baixas acompanhavam o ritmo da noite e das nuvens que dançavam sobre eles; o friozinho da noite os abraçava naquele instante revelando que as horas não foram sentidas naquele domingo. Não tinham pressa. Contemplavam o relento da noite procurando a beleza e a razão de todas as coisas. Estavam repletos.
Porém, a segunda-feira começa a dar sinais de chegada e mesmo a noite irresistível não consegue pará-la. Ei-la: é hora de irem todos, hora de voltarem para os maridos e filhos e, quem sabe, para as teses. As taças, os guardanapos, as garrafas, os talheres voltarão para seus lugares quando a luz do dia chegar, não agora.

*
João não dormiu ao chegar a casa, não se importava com o que deveria fazer quando o dia chegasse. As tarefas, o trabalho que sempre lhe chamava logo cedo, nada conduziu João para a cama. Ele queria ver o sol nascer. Poucas vezes fazia isso. Riu sozinho quando se deu conta da loucura que planejava. Largaria tudo, pelo menos hoje.
Foi arrebatado. João se lembrava da noite que passara com os amigos, de toda a vida que eles despertaram. Abraçou-se a um lençol, encostou a cabeça na janela e observava os carros e ônibus que abriam a avenida para mais um dia de outros. Quando viu que o sol se aproximava sentou-se no sofá para escrever.
João piscava os olhos, a noite o vencia.

*
O dia já desperta e com ele as obrigações, o café forte, o remédio para curar a dor de cabeça. E cada um, do seu lugar, no seu tempo, sai de casa outra vez. Desta vez para outro ritual, o burocrático e sem graça, anestésico. A segunda-feira passa, e os cinco enófilos se distanciam cada vez mais da noite anterior, consumidos pelas tarefas do dia, quando são lembrados por João, através de uma longa mensagem por email, do quanto a reunião na noite anterior foi bela e importante.
A embriaguez do domingo retorna.
João, o mais jovem a se juntar ao grupo, a peça que faltava. E que a partir de agora não voltaria mais. Foi a última mensagem de João. Mensagem pronta, proposital e que espantou a todos com palavras tão bonitas sobre o significado daquele encontro para ele. João se entregou. Mas não tinha importância só para ele, tinha para todos, e com aquela mensagem cada um, do seu lugar, percebeu isso. 
O telefone toca, não é João, ele não é mais, ele quis e decidiu assim.