quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

No quintal

No primeiro dia surgiu num quintal uma abelha. Ela logo foi embora, pois não encontrou ali nenhum abrigo. Sem chão, sem árvores, sem flores, sem vida. Tudo era cimento. Como a tal abelha chegou até ali? Talvez estivesse perdida. Talvez alguém lhe tenha dado a indicação errada e ela foi parar longe, bem longe de casa. Não encontrando o que procurava, a abelha foi embora e não pretendia voltar aquele lugar sem vida, puro cinza.
A natureza criou as abelhas como seres muito curiosos e apesar de não desejar voltar àquele lugar tão cinzento, inabitado, a abelha não se conformou em ir embora sem saber porque o quintal era daquele jeito. Ela ficou intrigada com o lugar onde nada havia, e mesmo um pouco assustada, pensou que pudesse voltar lá mais uma vez.
Ela continuou seu caminho. 
Com o espírito curioso, que talvez só as abelhas tenham, retornou ao quintal cimentado. E retornou outra vez alguns dias depois.
Uma observação se faz importante: a tal abelha não sabia que se tratava de um quintal, pensava que outro país, outra cultura diferente da sua.
Quando voltou lá, repleta de esperança – outra característica das abelhas –, percebeu que nada tinha mudado. E ficou ainda mais intrigada, pois tudo no mundo muda o tempo inteiro. E pensou como poderia um lugar ficar tanto tempo sem vida?
Olhando ao redor, ao longo da rua, a abelha percebeu (não muito distante do quintal cimentado) alguns pássaros de olhos grandes – o que a deixou assustada – mas pensou que devia ser mesmo da espécie dos pássaros de olhos grandes.
Perguntou aos pássaros porque o quintal era daquele jeito. Espantosamente eles foram gentis com a abelha, mas falavam uma língua diferente, e lhe alertaram para não voltar lá pois era perigoso. 
“Ora, isso deve ser ciúme!”, pensou a abelha decidida.
Ela desconsiderou os avisos e passou a visitar o quintal no quinto e no sexto dia, no sétimo e assim por diante. Apesar de não encontrar as flores, a terra, o ar fresco, ou insetos, a abelha acabou por se acostumar àquela paisagem antinatural. 
Com o tempo percebia pequenos e grandes novos elementos no quintal, explorava as partes que cercavam-no até que certo dia encontrou algo que chamamos de janela. Ela olhou, girou, bateu e caiu. Ninguém atendeu.
A partir dessa incrível descoberta a janela tornou o mundo mais claro e belo para a abelha, uma nova perspectiva na vida. A janela destoava de todo o resto do quintal e fazia a abelha se sentir mais à vontade.
No último dia, a abelha estava girando em volta da janela, esbarrou nela sem querer e não havia mais a parede invisível, ela caiu do outro lado. (Isso aconteceu quando ela já havia perdido as esperanças de passar por aquele bloqueio).
Mais uma aventura. Levantou-se. Estava dentro de alguma bolha. Silêncio absoluto. De repente um golpe. Um golpe tão forte que a derrubou e ela não mais levantou. Lembrou-se dos pássaros de olhos grandes. Sem sentidos.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Companhia no almoço (ou, quando os macacos chegam)


O texto a seguir é a reprodução – o mais fiel possível – de uma conversa entre tio e sobrinha.

“O dia começou normal”.
“Normal? O que é isso, tio?”
“É quando algo é sempre do mesmo jeito”
“Ahn, continua...”
“Melhor voltar ao começo. Bem, quando a gente viaja cada dia é diferente do outro. Coisas diferentes acontecem o tempo todo”
“Então os dias de viagem são inormais?”
“Você quis dizer: Anormais?”
“Mamãe falou que o contrário de responsável é irresponsável, então o contrário de normais é inormais!”
“Faz sentido, minha querida, mas desconheço essa palavra, acho até que não existe. O certo é Anormais!”
Silêncio.
“Bem, na minha última viagem foi tudo muito normal, cada dia igual ao outro. Tudo muito calmo. A começar pelas refeições: sempre no mesmo horário, e eu estava lá pontualmente”
“E o que é pontualmente?”
“Algo que é pontual”
“Ahn”
“Eu estava sentado no mesmo lugar onde fazia as refeições todos os dias, os sete dias em que estive lá”
“Que chato”, não se contentou a sobrinha.
“Como?”
“Ah, tio, é chato fazer a mesma coisa do mesmo jeito sempre, não é?”
“Talvez (pausa). Mas, como falei houve um dia em que as coisas começaram diferentes. Primeiro, havia sol, quando todos os outros dias só chovia. E o sol estava agradável, morno, disposto a fazer companhia o dia inteiro. Depois, uma das reuniões foi cancelada, o que me deu tempo para ir passear um pouco ao redor. O lugar era muito bonito”
“Um dia você me leva lá?”
“Acho que você não vai gostar de lá”
“Por que não?”
“Não há crianças lá”. Novo silêncio.
“Você quer ouvir o fim da história?”
“É..”
“Eu fui almoçar, mas meu lugar de sempre estava ocupado. Fui me sentar noutro lugar”
“Tinha seu nome?”
“Onde?”
“Na cadeira onde você sentava. Ou você comprou a cadeira?”
“Claro que não!”
“Então não era sua!”
Novo silêncio.
“Mas sabe que foi bom eu trocar de lugar?!”
“Por quê?”
“Porque eu me sentava perto da porta, dos doces. Mas com a troca fiquei perto da janela. E vi quando um macaco desceu por uma corda, pulou numa árvore que estava ao lado da janela, colhia as frutas e as devorava”
“Era grande?”
“Sim, ele comia e olhava p'ra mim, depois pulava para outro galho e pegava outra fruta, voltava para perto da janela e ficava me olhando, parecia me perguntar: 'e você, não vai comer não?'”.
“E o que você respondeu?”
“Eu estava comendo, mas ele era muito mais rápido que eu e terminou antes. Mas não ia embora. Ele me fez companhia até eu terminar o meu almoço”
“Por que você não deu um pouco da sua comida para ele?”
“Porque não pode”
“Por quê?”
“Cada animal come a comida de onde é mais adequado para si. Nós, seres humanos, preparamos nossa comida, os macacos não, eles comem as frutas das árvores”
“Eu ia gostar de ter o macaco como meu amigo. Eu ia dividir minha comida com ele e ele ia me dar uma fruta da árvore”
“Mas eu gostei de ter o macaco como meu companheiro de almoço, é que foi muito rápido, a gente não conversou muito”
“Então você me leva lá que eu converso com ele”.

O ônibus que eles esperavam chegou. Subiram em silêncio e eu não ouvi mais nada.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A Vaga


Um homem passa diante de uma placa com a seguinte inscrição: “Há vagas”. Curioso e decidido a trocar de emprego ele resolve procurar mais detalhes. Entra.
Havia uma pequena entrada, um corredor estreito e comprido; no final do corredor, dobrava-se à esquerda. Lá o homem encontrou uma mulher sentada diante de uma mesa. Séria. Parece não ter visto o homem entrar.
Tudo muito pequeno. Apertado. Incômodo. Sufocante.
O homem pergunta o que é necessário para preencher a vaga. A mulher lhe estende uma folha de papel, não diz nada, sequer olha para ele. Sentindo-se intimidado, o homem pega o papel diz “obrigado” à mulher e sai.
Felizmente ninguém mais havia passado pelo corredor, pois o homem saiu correndo assim que dobrou à direita. Estava assustado, a mulher tinha uma aparência severa demais, e o ambiente todo muito fechado quase o deixou sem ar.
Quando estava na rua, decidiu tomar um café e ler o que havia na folha. Parou, sentou, bebeu água e pediu um café. Pegou o papel dobrado na camisa e surpreendeu-se ao ler: “Venha fazer parte deste grande empreendimento!! Se você é observador, gosta de caminhar e é independente, junte-se a nós!!”. “Só isso?” pensou o homem. Ainda sem acreditar no que lia, o homem decidiu se candidatar a uma vaga.
Quando voltou ao lugar sufocante e disse que queria se candidatar à vaga, a mulher sorriu-lhe e disse: “A vaga é sua”. Ela se levantou e abriu uma porta. Espantoso! Havia uma praia maravilhosa do outro lado. (Daquelas que a gente só conhece pelos programas de viagem ou filmes).  Ainda sorridente, a mulher voltou-se para o homem e disse-lhe: “Agora, seu trabalho é observar o mar, caminhar pela areia e pescar para sua sobrevivência. Boa sorte!”.
O homem entrou pela porta. A mulher fechou a porta atrás dele.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Retratos


De repente a gente olha para o passado e se dá conta de que já não há memória alguma. As coisas, os objetos, as lembranças, as festinhas, os acontecimentos, os jeitos, os gestos. Tudo isso fica para trás, sem registro. As lembranças se confundem com algo imaginário, com fantasia, com algo que, no momento da lembrança, parece não ter sido.

Foto: Elaine Pinto
 - Às vezes me esforço por lembrar as coisas, queria mesmo era ter uma gaveta dentro da cabeça, porque quando fosse procurar, saberia onde encontrar.
- Por isso gosto das fotografias, elas me fazem lembrar, me levam de volta àquele instante...
- Não  fazem lembrar nada. Nos esforçamos, é verdade, mas esse esforço pode nos levar a uma ilusão, e não ao que aconteceu de fato.
- E o que aconteceu de fato?
- Não sei, já não lembro. Olho as fotografias mas não estou lá. Olho os objetos, os bilhetes, os livros, o vinho..., mas nunca tive nada disso. Eu sei que hoje esses objetos habitam toda a casa, estão espalhados pelos armários e gavetas como memórias de algum dia...
- O dia que você esqueceu?!
- Não, o dia que eu já não tenho certeza se existiu.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Silêncio na sala

Silêncio.

O barulho do relógio ao fundo, e ninguém. Não há ninguém. Ninguém aparece. Lá pelas tantas surge uma alma pedindo uma informação qualquer. – Será que foi sério? – Quem pode saber?

Mais tempo de espera. Minutos. Horas passam. E o relógio. Não, as horas não passavam de fato. O telefone toca. Uma mensagem de serviço telefônico.

“Não, isso não atrapalha agora”. Sem atenção, deixa o livro cair, página vinte e oito, e “por que será que ninguém se importa?”.

As bolsas, os cadernos, as pastas e as canetas. Tudo espalhado sobre a mesa. Todo o material necessário. Mas de que servia? Nada, pensou. Ninguém se importa. ”E se ninguém se importa, não sou eu quem vai se importar”.

De repente um vulto para ao lado da porta. O olhar faz a pergunta cruel: “onde estão todos?”. Olha ao redor novamente. E vai embora. Novo e longo silêncio. Até que finalmente começa a ouvir burburinhos pelo corredor. Hora de ir. O prazo terminou e ninguém apareceu.

Como sempre, aliás!

Arrumou as coisas que estavam sobre a mesa. Preparou-se. Preparou-se para voltar amanhã. Voltar para o silêncio de todos os dias.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Banho de chuva

Como poderia começar a me justificar? Não, não há jeito. Estou perdido entre as ruas.

Gosto de chorar de vez em quando pra aliviar a alma. O problema é que o “de vez em quando” se transformou em “frequentemente”. - Imagino!

Gosto de olhar as ruas e as pessoas que transitam nelas. São todos muito parecidos, apesar das formas. Apressados demais, arrumados demais, indiferentes. Mas é por isso que gosto daqui. No frio, no calor, nos dias de sol, no céu cinzento. Não é possível ficar indiferente. Esta cidade possui um efeito devastador em quem a vê: faz qualquer um apaixonar-se por ela e não querer mais ir embora. Mas, apesar da beleza de todo dia que vejo ao abrir a janela: o violino tocando em frente ao mercado, a flauta que repete os hinos dos clubes de futebol, o funk do alto-falante de um carro que passa, eu tenho vontade de chorar muitas vezes. Como hoje. E o que será isso? Bem, cenas dos próximos capítulos...

Na verdade, minhas lágrimas de hoje são sintomas de como o dia está se mostrando.
As nuvens cinzentas, pesadas e frias parecem representar o lado feio das coisas. Mas é tão bom um banho de chuva. Uma chuva de verão, daquelas que molham muito e duram pouco. Queria um banho de chuva agora para não ter que chorar.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Toalhas

Chegou do trabalho e foi espalhando chapéu, roupas, meias e sapatos pelo caminho que percorria. Os sapatos e meias pela sala, a bolsa no chão do corredor, a calça sobre o sofá. Quando enfim chegou ao quarto já estava nu. Pegou uma toalha que estava pendurada na cadeira, jogou-a sobre o ombro e seguiu para o banheiro.

O incrível prazer do banho depois de um dia tedioso de trabalho. Às vezes pensava que o trabalho não lhe fazia bem. A água lhe caía sobre sua cabeça. Pensava isso e logo se arrependia, pois gostava do trabalho. Gostava do que fazia, do setor de impostos e cobranças. A bem da verdade não era a burocracia que lhe incomodava. Fazia e refazia cálculos sem grandes problemas e só pensava que o emprego não lhe fazia bem por causa da fadiga que as pessoas que trabalhavam no mesmo setor lhe causavam, principalmente as que ocupavam as mesas ao lado da sua. “O que fazer? Tenho de suportá-las”, dizia resignado.

Assim seguia a vida: o trabalho e a fadiga, a fadiga e o banho, o banho e a solidão. “Finalmente!” bufava no intervalo entre a fadiga e o banho.

Depois de jantar, geralmente espaguete com variações nos ingredientes do molho de tomate, lembrava-se de alguma comemoração, algum encontro de velhos conhecidos. Apesar do desagrado que as pessoas em geral lhe causavam e todo o esforço que exigia a sociabilidade, comparecia a alguns desses eventos porque não queria parecer bruto aos olhos dos outros, principalmente daqueles com quem convivia diretamente. Ainda que a esses suportasse menos que os demais.

Quando ia a esses encontros sociais dedicava pouco tempo para decidir o que usar, coisa comum entre muitos. Somente quando chegava aos lugares reconhecia que devia ter se preocupado mais com a aparência. Primeiro porque, quase sempre, os lugares desses eventos “exigiam” isso, e segundo porque não queria parecer descuidado com a aparência diante dos outros.

Pegou um casaco no armário, olhou ao redor e saiu.

sábado, 27 de agosto de 2011

Dias de Rudeza

Rudeza vivia numa grande cidade. A maior, a mais bonita, mais agitada, mais populosa etc. e tal. Ela até gostava de morar ali, mas às vezes pensava se gostava por hábito simplesmente. Afinal, só conhecia este lugar desde que nasceu. E a cidade sempre foi assim, populosa, grande, prédios altos, tanto quanto Rudeza se lembra. Porém, raros os momentos em que Rudeza prestava atenção à bela cidade ao seu redor. O motivo era bastante comum: trabalhava demais. Eis o grande problema de todo cidadão [e toda cidadã!] das grandes cidades do mundo: o excesso de trabalho.
Trabalhar é bom, não só pelo salário que se recebe pelo que se faz [há aqueles que nem isso!], mas o “fazer”, a tarefa diária [ou não, depende do tipo de trabalho que se realiza!], o ocupar-se de algo, isso é bom e por isso Rudeza trabalhava. Ela não sabia o que era viver sem trabalhar, e talvez por isso o fizesse demasiadamente. Quando nos parcos momentos em que olhava sua história não se lembrava de nenhum momento de puro ócio. O trabalho era sua vida, sua vida não existia sem o trabalho.
De tanto trabalhar, até mesmo esta questão – antes inquestionável – se coloca à sua frente. O tipo de trabalho era ruim, o salário pior e tudo que remetesse a ele só deixavam o temperamento de Rudeza ainda mais desgastado. Já pela manhã encontrava com o síndico do prédio, sr. Mau Humor. Rudeza caminhava um pouco, com as pessoas sempre esbarrando nela e sem nunca se desculparem por isso. Bem, se não havia remédio para o tédio, aliás seu nome Rudeza e não Depressão, ela subia no ônibus em direção ao trabalho e pensava que todas as pessoas no mundo, talvez nem todas, só as da cidade, eram como aquele motorista que fazia o mesmo trajeto e as mesmas barbaridades todos os dias: estúpidas!
O que resta a Rudeza neste mundo de gente estúpida? Ela não gostava de se perguntar essas coisas pois logo se irritava. Então deixava toda lógica e toda física de lado, recolhia-se e empurrava as pessoas que resmungavam e se espremiam dentro do mesmo ônibus. Eles nunca ouviram que “dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”? Rudeza também não, mas as coisas que lhe passavam pela cabeça certamente eram parecidas com isso, noutras formulações.
Enfim chegava ao trabalho e nele encontrava as pessoas, o escritório, os papéis para assinar, o cubículo que era sua sala, os computadores e, outra vez, as pessoas. O que poderia irritar mais Rudeza: um computador que não funciona ou uma pessoa que pensa que funciona? Nem mesmo Rudeza sabia. Infelizmente ela não podia ignorar seus “companheiros” de trabalho, eram seus subordinados.
E assim seguiam os dias de trabalho de Rudeza. Mais cafezinho, mais engarrafamento, mais pessoas com assuntos irrelevantes, ônibus lotado, idas e vindas de casa para o trabalho. E ainda todo aquele trabalho para fazer em casa. Todos os dias as mesmas coisas, as mesmas pessoas. O tempo corria, e Rudeza só pensava como ele custava a passar. Os meses e os dias caminhavam como sempre e Rudeza continuava a viver no seu modo singular de responder às pessoas: sorriso irônico, uma frase mordaz [quando não um empurrão]. Até que um dia, já bem velha com a mesma impaciência de sempre, subiu num ônibus para ir a um lugar qualquer, o motorista fez uma curva em alta velocidade, Rudeza caiu e pensou que todas as pessoas no mundo eram como aquele motorista: estúpidas!

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O diário de Catarina

Os dias se passavam e Catarina percebeu que precisava de algo para se distrair. Mas algo que fosse sério, algo que não fosse trabalho, mas que poderia lhe ajudar a decidir sobre os rumos da própria vida. “Como? De que maneira vou encontrar um hobby?” pensava.
Gostava de escrever e pensou em exercitar-se, faria disso a sua distração. “Está certo, o exercício da escrita é sempre interessante e há muito estou afastada dessa atividade que me parece tão vital”, pensou ela, decidida. Porém, não tinha deixado absolutamente de escrever. As desejadas traduções a realizar tinham ficado um pouco de lado, é verdade, talvez nem estivessem mais em segundo plano porque Catarina estava tomada pelo trabalho, como a maioria das pessoas nestes tempos infernais. Vez ou outra escrevia seus contos, críticas, resenhas e até ensaiava artigos acadêmicos.
Fato era que Catarina foi consumida por todas as outras coisas, totalmente absorvida pelo trabalho [do qual ela nem gostava tanto assim!] e se afastava do que tinha amor por fazer.
“Ah, já sei: vou escrever sobre filmes!”. Filmes? Cinema? “Já nem me lembro da última vez em que fui ao cinema, deve fazer muito tempo, ou o filme não foi tão bom assim” pensou, tentando se lembrar, pelo menos, qual tinha sido a última película assistida. “Argh, preciso me libertar destas coisas, tantas coisas...”.
Depois de tanto estresse por causa do trabalho e a desordem na sua vida, Catarina decidiu relembrar o que escrevia quando adolescente. Encontrou um diário dentro de uma caixa na biblioteca. “Ainda bem que só eu estou lendo isso, quanta bobagem, coisa de criança. Coisa de criança que não sabe pegar num lápis sequer...”, pensou, muito crítica consigo mesma [como sempre].
Lendo aquelas frases e sensações mesmo tão pueris manteve a decisão de voltar a escrever. “Um diário, é isso, assim ninguém precisa ler mesmo”, e um sorriso esboçou-se em seu rosto. Pronto. A missão agora era encontrar um diário ou caderno e pôr em prática sua decisão. Poderia escrever ficção científica [“mas não entendo nada desses termos científicos de blábláblá...” pensava] ou romance. Depois de ler seu diário antigo já tinha decidido que poesia “só as dos outros, eu não tenho vocação para isso”, pensou, sentenciando. Por fim, pensou que poderia escrever sobre qualquer coisa: o mundo, a política, a vida, os amigos... “eu estou aqui, no mundo, na rua, no ônibus, no barco, caminhando pela cidade. E o que eu vir e escrever, guardar, pode ser só uma impressão, pode ser ficção ou loucura, mas a vida é um pouco disso, né?”. Estava satisfeita, por enquanto.
“Melhor guardar esse diário horrendo”, ponderou. Antes, porém, de esquecer novamente o antigo diário, ela encontrou um trecho de um poema [de Cecília Meireles] do qual gostava bastante; este trecho serviria de epígrafe ao seu novo diário:
No mistério do sem-fim

equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta