terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Conversa de Casal IV - Caminhos


Ele: Ah, nem é tão longe assim... o mercado.
Ela: É, mas se a gente tivesse vindo direto pela outra rua e virado à esquerda aqui na frente, seria mais rápido ainda, não?
Ele: Não. Seria a mesma coisa.
Ela: Eu achava que era mais rápido...
Ele: Mas não é...A gente virou à esquerda e seguiu direto, daria no mesmo fazer o que você falou, seguir direto e virar à esquerda.
Ela: Puxa, você destruiu os meus sonhos agora!
Ele: Deve ser bom estar casado com alguém que destrói teus sonhos.


domingo, 22 de dezembro de 2013

Quando penso*


Quando penso que não tenho nada, lembro-me de que a vida está se construindo, que começa e termina a cada dia, a cada nova e mesma tarefa, cada refeição.

Quando penso em dois estranhos que um dia se esbarram na rua ou se sentam lado a lado durante a aula, e seguem estranhos um para o outro ao longo de uma vida que planejam juntos, vejo nisso a beleza.

Quando penso que você está para chegar, alegro-me profundamente e começo a contar quantos dias ainda faltam. Crio desenhos na minha cabeça, vejo a casa iluminada para te receber.

Todos os outros também estão eufóricos.

Penduramos faixas nas imensas janelas da sala e também descendo pelo corrimão. Trocamos todos os móveis de lugar, fazemos doces e os colocamos sobre a mesa, um bolo e alguns enfeites. Espalhamos almofadas pela sala e pelo jardim. (A grama está mais verde hoje!). Enchemos balões de todas as cores, porque ainda não sei de qual você gosta mais. A casa está radiante para esse dia de festa.

Quando penso que você vai chegar a qualquer momento minhas mãos suam e tenho vontade de dançar, de sair correndo, de te encontrar logo, de não ficar para ver você chegar, de encurtar o caminho.

Invento histórias sobre as flores cantantes, japoneses gigantes e insetos domésticos. Investigo memórias, e vejo que nos meus tempos de criança eu não esperava por você. Não é uma vida triste. Escondo os guardanapos da padaria para te mostrar algum dia, são lembranças fotográficas perdidas. É que quando você chegar vai ter muita coisa para fazer, novidades surgirão a todo o momento e eu quero guardar as cores, os círculos e todas as formas daqui para te mostrar, como os balões.

Quando penso que você vai chegar e vai me levar também para viajar por mundos coloridos e me mostrar tuas invenções (porque eu não vou conseguir te mostrar tudo), nada mais vai ser igual. E você vai querer ser você, vai querer ver outras cores, vai me contar o que viu (quem sabe se vai querer mesmo) e sair correndo também.

Quando penso que você está tão longe no espaço-tempo, e eu já nem sei se vou mesmo te ver, meu coração aperta por dentro, e me faz tremer. Quando penso que você ainda não está aqui, mesmo assim sinto saudade, mesmo que você ainda não seja nem corpo nem mãos, e não tenha os cabelos crespos como os meus. 




*Para um futuro

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Conversa de casal III


Ela: Hoje eu tô descompensada!
Ele: Descompensada?!
Ela: É, olha só o meu cabelo...
Ele: Teu cabelo é lindo, não há nada que você faça no cabelo que eu passe a achá-lo feio... Ah, tem uma coisa...
Ela: O quê?
Ele: Alisar!


domingo, 27 de outubro de 2013

Anos Felizes


Eu sei que este não é um blog de crítica ou resenhas, mas hoje vou mudar um pouco a temática, apenas a título de exercício e atualização do blog.

Há algumas semanas assisti ao filme Anni felici (que em português significa: Anos felizes), do italiano Daniele Luchetti. A história se passa nos anos setenta em Roma, Itália, e é sobre um casal que vive uma intensa paixão, mas que, com a mesma intensidade da paixão, está sempre às turras.


Foto: Cineblog.it


Guido é um escultor que tenta ter seu trabalho reconhecido, dá aulas em seu estúdio e cuida dos filhos junto com a esposa, Serena. Ela é dona de casa, ciumenta, pouco interessada em arte, mas muito apaixonada por Guido. O filho mais velho, o narrador da história, em algum momento diz que Serena sabia convencer Guido de qualquer coisa, apesar de não gostar de arte mas ser totalmente interessada naquele artista. Os filhos, dois meninos, Dario e Paolo são bonitos e espertos e sempre que o pai está em seu estúdio trabalhando com modelos para produzir suas obras os dois são expulsos pelo pai.

Guido deseja ser independente através de seu trabalho artístico, seja para provar para a sogra que é capaz de sustentar a casa – como convém a um homem adulto, um “pai de família” – seja para mostrar à própria mãe que ele é bom naquilo que faz. Essas intenções não estão na linha de frente do filme, mas é possível perceber essa preocupação tanto pelo narrador – que é o filho mais velho contando parte da história – como pelas cenas em que Guido vai visitar a mãe e a família de Serena.

O escultor tem em Serena e nos filhos uma espécie de refúgio para onde pode voltar quando as coisas não saem exatamente como planejadas. Como, por exemplo, na sua performance em uma galeria de Milão e que foi criticada negativamente. Ao mesmo tempo ele deseja manter a família, esse porto-seguro, afastado do seu trabalho, principalmente Serena só que ela o contraria muitas vezes.

Sentindo-se desgastada com essa intensa busca por manter Guido perto e manter-se a par do que acontece com ele, como não ser apresentada aos amigos de Guido ou dele não permitir que ela assista suas performances (e quando ela o faz para surpreendê-lo, acreditando que ele vá gostar da surpresa, ele se sente humilhado), ela decide “dar um tempo” nessa relação que também se mostra fatigada.

Serena viaja para a França com os filhos a convite de Helke, que trabalha numa galeria onde Guido tem algumas obras expostas à venda, para um encontro de feministas. Durante a viagem as duas acabam se envolvendo.

Guido se sente contrariado com a viagem de Serena e dos filhos, com esse afastamento, pois a recepção de sua performance em uma galeria em Milão não foi positiva, e ele – ao que parece – esperava ser amparado pela esposa mesmo ela não sabendo das críticas que ele recebeu porque ele queria poupá-la. O mundo de Serena então se amplia a partir dessa viagem, e ela até se esquece de sua mãe dizendo que ela deu dois filhos a Guido e isso sempre o levaria de volta para ela. Serena percebe que o mundo é maior e oferece mais possibilidades do que ela pensava antes.

De volta a Roma, e de volta para Guido, Serena não se esquece de Helke. Ela percebe que Guido é sincero ao dizer que as relações que ele mantém (ou mantinha) com as modelos que posavam para ele não interferem no que ele sente pela esposa. Porém quando Guido assiste a um vídeo que o filho mais velho faz da viagem desconfia de que tenha sido traído. Serena confirma o envolvimento com Helke e se dá conta de que isso tem interferido na relação entre os dois.

É interessante observar que o mundo de Serena era completamente voltado para o marido e os filhos. Todo o resto não interessava a ela. Até que Helke pergunta o que Serena deseja. Ela responde que deseja a felicidade de Guido, que ele se realize como artista, que ele se encontre. Por que este é o desejo dela? Não deveria ser o de Guido? Serena não estava nutrindo os próprios desejos, ela os projetava às realizações do marido. Parece que para Serena se Guido estivesse satisfeito com o próprio trabalho, e nisso talvez possamos entender como bem sucedido, reconhecido etc., a relação entre os dois melhorasse, isto é, ela não ficaria “restrita” ao lar.

Devastado com a revelação da esposa do envolvimento com Helke, Guido concentra-se no trabalho, retoma alguns projetos e faz uma bela escultura (que é a “essência” de Serena, tanto quanto pude entender) que dá novo significado à sua arte. Os dois tem uma bela despedida.


Guido se sente contrariado com a viagem de Serena e dos filhos, com esse afastamento, pois a recepção de sua performance em uma galeria em Milão não foi positiva, e ele – ao que parece – esperava ser amparado pela esposa mesmo ela não sabendo das críticas que ele recebeu porque ele queria poupá-la. O mundo de Serena então se amplia a partir dessa viagem, e ela até se esquece de sua mãe dizendo que ela deu dois filhos a Guido e isso sempre o levaria de volta para ela. Serena percebe que o mundo é maior e oferece mais possibilidades do que ela pensava antes. 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Enquanto o conto não vem


No primeiro dia foi a dor mental, a angústia de estar num mundo sem reconhecê-lo;

No segundo dia foi a ressaca, enxaqueca e enjoos para curar a sensação de não existir;

No terceiro dia foi a gripe, a garganta arranhando cada palavra e o corpo incapaz de obedecer.

*             *               *

                          A mente talvez já soubesse o que estava por vir, mas o corpo, jovem e rebelde, não quis escutar.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Noites na contramão


O relógio mostrava que já eram onze e meia da noite. Fechei o caderno de anotações, deixando o restante do trabalho para o dia seguinte. Acordaria cedo e retomaria as atividades de sempre. Um último gole d’água, e fui deitar. O corpo demonstrava sinais de que o dia tinha sido longo, e ele precisava de descanso.
O dia seguinte seria de trabalho intenso e distante. Eu teria de ir a outra cidade. Deitei. Apaguei as luzes. Durante muito tempo busquei o sono. Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque.
São onze e trinta e oito da noite. Meu corpo resmunga. Parece irritado comigo, porque eu não o obedeço. Tento novamente. Viro para um lado, viro para outro. Mãos e pernas buscando uma posição mais confortável. O corpo inteiro e as partes não se entendiam. Sento-me na cama. Ando pelo quarto. E já pareço sem forças para continuar. Ai, agora sim vou conseguir dormir. Meia-noite.
Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque.
Qualquer coisa me assusta, é o vento que abre a janela trazendo água para dentro do banheiro.  Levanto-me para fechá-la. A cama não é atraente. São três e vinte e cinco.

A rua está deserta.  Apenas dois motoqueiros duvidosos estão lá embaixo à espreita de uma vítima. Ninguém passa, apenas os carros de polícia, viaturas e camburões. Invadem o estacionamento do mercado como que negociando com algum sequestrador ou terrorista. Quando o camburão sai, é alvejado e parte-se em dois. Assisto a tudo da janela.

O despertador toca, são sete e quarenta da manhã. Esqueço-me sobre a cama por “mais cinco minutos”. Os sinos da Igreja anunciam a hora da missa. Já atrasada, desperto. O telefone chama e do outro lado alguém me diz que está tudo cancelado, chove demais.
O dia segue outro curso, mas que é igual ao de sempre com o caderno de anotações e as cartas que chegam. As horas passam e tudo se mantém igual. 
Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque.
São onze e meia da noite. Bebo uma xícara de chá para apressar o sono. Meus olhos cedem. Apago as luzes.
Meu corpo outra vez briga com o leito. Viro, rodopio, sento, levanto. Jogo os braços e pernas para os lados. Digo “basta”, mas não basta para ele. Meu corpo me tortura até querer me dar por vencida.
Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque.
Agora já nem sei se é mesmo o corpo brigando com as pernas e mãos, ou com a minha mente, ou se é a mente quem briga com o corpo. Sei que algo não funciona. São onze e quarenta e nove. Tento desistir, dar a luta por encerrada. Vitória do corpo, mas ele não obedece. Parece não querer a vitória, ou a vitória dele é me esmagar a cada vez?  
Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque.
São três horas e vinte e oito. Abraço-me ao travesseiro em busca de alguma proteção, algum conforto.

Os dois motoqueiros entram no prédio sem serem vistos ou anunciados. Tocam a campainha. Ao tentar ligar para o porteiro já é tarde, os dois motoqueiros entraram no apartamento. Eles querem arrastar, tirar, consumir tudo o que há lá dentro. A jovem está sozinha. Eu não estou ali, mas assisto a tudo.

São quatro e doze. Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque. Estou só, e estou rendida.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Conversa de casal II


Depois de arrumada a casa, Ela desembaraça os cabelos, Ele lê.

Ela: Quando eu estava em casa, mamãe é que desembaraçava meu cabelo.
Ele: Tá com saudades dela, né...
Ela: É...
Ele: ... pra desembaraçar seu cabelo, né?!
Ela: É...
Ele: ... e pra arrumar a casa...
Ela: É...Maldade, né?!
Ele: É maldade... Eu sei que não é só por isso,  cê tá com saudade dela mesmo...
Ela: É, tô...
Ele: Eu também. Pra fazer a comida.

Pano rápido.



sábado, 24 de agosto de 2013

O pacto de James e Cam


Nota: o texto abaixo não é de minha autoria, é uma tradução que fiz de parte do romance "Ao Farol" (To the Lighthouse), de Virginia Woolf. A tradução apresentada aqui corresponde ao capítulo 4 da parte III. O capítulo não tem título originalmente, criei este título ("O pacto de James e Cam") apenas para colocar aqui no blog.  


As velas tremulavam sobre suas cabeças. A água ria e batia nos lados do barco que repousava quase inerte sob o sol. De vez em quando as velas se agitavam com uma leve brisa, mas a marola avançava sobre elas e cessava. O barco não se mexia mais. Sr. Ramsay sentava-se no centro do barco. E logo ficaria impaciente, James pensou, e também Cam olhando para o pai que se sentou com as pernas cruzadas no meio do barco entre eles (James desviou para a popa; Cam sentou-se sozinha na proa). Ele detestava fazer as pessoas esperarem. E, certamente, depois de um segundo ou dois daquela inquietação, ele falaria alguma grosseria ao filho de Macalister que pegou os remos e começou a remar. Mas eles sabiam que o pai nunca ficaria satisfeito até estarem a todo vapor novamente. Ele continuava procurando por uma brisa, inquieto, resmungando coisas que Macalister e o filho acabariam escutando, e ficariam constrangidos. Ele os fez vir. Ele os forçou a virem. Com raiva, eles queriam que os ventos nunca mais soprassem, assim o pai se sentiria contrariado de todos os modos possíveis, já que os tinha forçado a vir contra a vontade.
Durante todo o caminho pela praia eles ficavam para trás, juntos, embora Sr. Ramsay insistisse com os olhos: “Andem, andem”. Tinham as cabeças inclinadas para baixo, como que esmagadas por algum impiedoso vendaval. Falar com ele, não conseguiam. Deviam continuar; deviam seguir. Eles tiveram de caminhar pela praia atrás do pai, carregando pacotes de papel pardo. . Mas juraram em silêncio enquanto caminhavam se apoiarem e suportarem o pacto – resistir à tirania até a morte. Assim eles se sentaram nas extremidades opostas do barco, um de frente para o outro, em silêncio. Eles não diziam nada, apenas olhavam vez ou outra para onde o pai estava sentado com as pernas cruzadas, agitado, franzindo a testa, resmungando e sussurrando impacientemente coisas para ele mesmo, e esperando sôfrego por uma brisa. E eles desejavam a calmaria. Desejavam que ele se sentisse frustrado. Desejavam que toda a expedição fracassasse, aí teriam de voltar com seus pacotes pela praia.
Mas agora que o filho de Macalister remava em outra direção, as velas balançavam lentamente, o barco apressando-se, bordejou e seguiu veloz. Sr. Ramsay descruzou as pernas, pegou sua bolsa de tabaco, segurou-a com um pequeno grunhido para Macalister, e eles perceberam, sofrendo, que o pai estava completamente satisfeito. Agora velejariam assim por horas, e Sr. Ramsay perguntaria ao velho Macalister alguma coisa – provavelmente sobre a terrível tempestade do inverno passado – e o velho Macalister o responderia e fumariam seus cachimbos juntos e Macalister pegaria uma corda de alcatrão, começaria a fazer e a desfazer nós; o filho dele iria pescar e não dizer mais nenhuma palavra. James se veria forçado a manter os olhos todo o tempo nas velas. Pois se ele esquecesse, as velas iriam franzir e tremer, e o barco diminuiria a velocidade, e Sr. Ramsay diria rispidamente, “Cuidado! Cuidado!” e o velho Macalister se viraria lentamente de seu lugar. Então escutaram Sr. Ramsay perguntando das casas, da grande tempestade no Natal. “Chegou bem naquele ponto”, disse o velho Macalister descrevendo a grande tempestade no último Natal quando dez barcos entraram pela baía em busca de abrigo, e ele viu “um aqui, um ali, outro lá” (ele apontava para o entorno da baía. Sr. Ramsay o seguia com a cabeça). Ele viu três homens agarrados ao mastro. Então a tempestade foi embora. “E no fim nós soltamos o barco”, ele continuava (na raiva e no silêncio, James e Cam apenas suspiravam qualquer coisa, sentados nas extremidades do barco, unidos pelo pacto de lutar contra a tirania até a morte). Por fim, eles pularam do barco, lançaram o bote salva-vidas e escaparam dali – Macalister contou a história; e embora James e Cam tivessem apenas suspirado uma palavra aqui e ali, estavam conscientes o tempo inteiro do seu pai – de como Sr. Ramsay se inclinava para lá e para cá, se encostava, de como sintonizava a própria voz com a de Macalister, como soprava o cachimbo, e olhava ali e acolá para onde Macalister apontava; ele se regozijava ao pensar na tempestade, na noite escura e nos pescadores se esforçando naquela noite. Ele gostava da ideia de que os homens trabalhassem e suassem na praia tempestuosa à noite, usando os músculos e o cérebro contra o temporal; ele gostava da ideia de que os homens trabalhassem daquele jeito, e as mulheres cuidassem da casa, e se sentassem ao lado da cama enquanto as crianças dormiam, enquanto os homens se afogavam na tempestade. James e Cam eram capazes de perceber isso (ambos o olhavam, e olhavam um para o outro), a agitação e a vigilância, e o zunir do tom da voz dele, e até certo sotaque escocês que o fazia parecer um camponês quando ele perguntava a Macalister sobre os onze barcos que foram empurrados para a baía durante a tempestade. Três sucumbiram.
Sr. Ramsay olhava orgulhoso para onde Macalister apontava; e Cam pensou, sentindo orgulho do pai sem saber exatamente por quê, que se ele estivesse lá teria lançado o bote salva-vidas e chegado até o local do naufrágio. Ele era tão corajoso e aventureiro, pensou. Mas de repente se lembrou. Havia o pacto: resistir à tirania até a morte. Estavam repletos de ressentimento. Eles foram forçados; foram obrigados. Ele os mantinha novamente sob sua tristeza e autoridade, obrigando-os a cumprir ordens nesta bela manhã só porque ele queria dessa forma, obrigados a carregar esses pacotes para o Farol; fazer parte dos rituais, que realizava para seu próprio prazer, em memória dos mortos e que eles odiavam tanto que se atrasavam, e todo o gozo daquele dia se perdia.
Sim, a brisa era refrescante. O barco se inclinava, cortava a água que caía em cascatas verdes, em bolhas, em cataratas. Cam olhou para baixo, dentro da espuma, dentro do mar com todos os seus tesouros lá embaixo, e a velocidade a hipnotizou, e o laço entre ela e James cedia. Afrouxava-se. Ela começou a pensar: como estamos indo rápido. Para onde vamos? E o movimento a hipnotizava, enquanto James, com os olhos fixos na vela e no horizonte, pilotava contrariado. Mas ele começou a pensar, enquanto conduzia o barco, que precisava escapar; ele devia dar um basta em tudo isso. Poderiam atracar em algum lugar; e seriam livres. Eles se entreolharam por um segundo e tiveram a sensação de fuga e encantamento, por causa da velocidade ou da mudança. Mas a brisa provocava exaltação também em Sr. Ramsay, e, quando o velho Macalister virou para jogar a linha ao mar, ele gritou, “perecemos!”, e outra vez, “sozinhos”. E então, num de seus arroubos habituais de arrependimento e timidez, levantou-se e balançou as mãos em direção à praia.
“Veja como a casa parece pequena”, disse apontando querendo que Cam olhasse também. Ela se levantou relutante e olhou. Mas, qual era? Ela não conseguia distinguir qual era a sua casa, que ficava naquela colina. Tudo parecia distante, calmo e estranho. A praia parecia agora de uma sutileza distante e irreal. Aquela pouca distância que tinham navegado os levou para longe da praia, e mudou o olhar, o aspecto composto e recuado do qual não se faz mais parte. Qual era sua casa? Ela não conseguia vê-la.
“Mas eu, no mar bravio”, Sr. Ramsay murmurou.  Tinha encontrado a casa e a  olhava, também viu a si mesmo lá. Viu-se sozinho andando pela varanda da casa. Andava de um lado para outro por entre os vasos; e sentia-se muito velho e curvado. Sentando-se no barco  agachou-se abraçando os joelhos, representando seu papel – o papel de um homem desolado, viúvo, desesperado; e voltava a si quando os outros começavam a sentir pena dele; fez papel dele mesmo, enquanto esteve sentado no barco, que exigia da sua decrepitude, cansaço e lamento um pequeno drama (levantou as mãos e percebeu a fraqueza delas, a fim de confirmar aquele sonho) e como recebia em abundância a compaixão das mulheres,  imaginou que elas se compadeciam dele. E, assim, misturando algum sonho com esse estranho prazer que tinha pela compaixão feminina, suspirou, e disse gentil e chorosamente,

Mas eu, no mar bravio, afundo
Submerso nos mais profundos golfos,

As palavras lamuriosas foram ouvidas por todos. Cam, do seu banco, se assustou. Isto a chocou, a ultrajou. A manobra inflamou o pai; e ele tremeu, e parou gritando: “Olhem! Olhem!” tão urgente que até James virou a cabeça para olhar por sobre o ombro a ilha. Todos olharam. Todos olhavam para a ilha.
Mas Cam não conseguia ver nada. Ela pensava em como todas aquelas trilhas e o gramado, densos e atados às vidas que eles viveram ali, tinham acabado: foram apagados; estavam no passado; eram irreais e agora isso é que era real; o barco e a vela com seus remendos; Macalister com seus brincos; o barulho das ondas – tudo isso era real. Pensando nisso, ela murmurava para si “perecemos, sozinhos”, pois as palavras do pai voltavam a cada instante em sua mente, quando ele, vendo que ela o encarava indiferente, começou a chateá-la. Ela não sabia os pontos cardeais?, ele perguntou. Ela não sabia nem onde era o norte ou o sul? Ela realmente acreditava que eles viviam naquela direção? E apontou outra vez, mostrando onde a casa ficava, a casa deles estava ali entre algumas árvores. Ele gostaria que ela fosse mais esperta, disse: “Diga-me – onde fica o leste, e onde fica oeste?” disse, meio rindo-se dela, meio criticando, pois não lhe ocorria que alguém, que não era um imbecil absolutamente, não soubesse quais eram os pontos cardeais. Ela continuava sem saber. E percebendo seu olhar fixo, inexpressivo e agora mais assustado, olhos fixos para onde não havia casa, Sr. Ramsay se esqueceu do sonho, e de como ele andava entre os vasos da varanda de um lado para outro; como os braços estavam esticados para ele. Ele pensou: as mulheres são assim, a incompetência delas é irritante; e ele nunca foi capaz de entendê-las. Foi assim com ela – com sua esposa. Elas não conseguem ter nada claro na mente. Mas ele estava errado por se irritar assim; além do mais não gostava dessa patetice nas mulheres? Era algo extraordinariamente charmoso. Vou fazê-la sorrir para mim, pensou. Ela parece assustada. Ela estava tão quieta. Apertou-lhe os dedos e decidiu que sua voz, rosto e todos os gestos rápidos, que faziam as outras se compadecerem dele e elogiarem-no todos esses anos, deveriam mudar. Ele a faria sorrir para ele. Encontraria alguma coisa simples e fácil para dizer. Mas o quê? Pois, envolvido que estava com o trabalho ele esqueceu que tipo de coisa se diz. Havia um filhote de cachorro. Eles tinham um cachorrinho. Quem estava cuidando dele hoje?, perguntou. Sim, pensou James impiedosamente, vendo a cabeça da irmã diante da vela, agora ela não vai mais resistir. Eu vou ter de lutar sozinho contra o tirano. O pacto seria deixado de lado. Cam nunca resistiria contra o tirano até a morte, pensou James de um jeito mordaz, observando o rosto da irmã, triste, pálido, frágil. Como acontece, às vezes, quando uma nuvem deita sobre um monte verde, desaba a austeridade e ali entre todas as colinas em volta há melancolia e lamento, e é como se as montanhas é que devessem pensar no destino do que as nuvens esconderam, a escuridão, seja por piedade ou malícia se alegra com a tristeza delas: agora Cam se sentia assim nebulosa, sentada ali entre pessoas resolutas e calmas, e queria saber como responder ao pai sobre o cachorrinho, queria saber como resistir a essa urgência dele – perdoe-me, cuide do cachorrinho para mim; enquanto James, o legislador, com as tábuas da sabedoria eterna sobre os joelhos (a mão sobre a caixa do leme se tornou simbólica para ela), dizia, Resista. Lute contra ele. Ele o dizia com tanta firmeza e justiça. Pois eles devem lutar contra o tirano até a morte, ela pensou. De todas as qualidades humanas a justiça era a que ela mais reverenciava. Seu irmão era quase divino, o pai um suplicante. E em direção a quem ela iria?, pensou sentada diante deles, olhando para a costa cujos pontos lhe eram todos desconhecidos, e pensando como o gramado, a varanda e a casa estavam agora em evidência, e a paz voltava para aquele lugar.
“Jasper”, ela disse tristemente “ele ia cuidar do cãozinho”.
E como iria chamá-lo? O pai insistiu. Ele teve um cachorro quando era criança que se chamava Frisk. Ela vai ceder, pensou James no mesmo instante em que percebeu o olhar dela, um olhar do qual ele se lembrava. Elas olham para baixo, ele pensou, para o tricô ou algo parecido e então voltam a olhar para cima. Havia um raio azul, se lembrou de alguém que sentou com ele e riu, rendeu-se, e ficou muito bravo. Deve ter sido sua mãe, pensou, sentando-se numa cadeira baixa com seu pai diante dela. Começou a procurar por entre infinitas séries de percepções, folha por folha, dobra por dobra, suave e incessantemente pelo cérebro; entre cheiros, sons; vozes ásperas, inconstantes, doces; e as luzes passando, e batidas de vassoura; e o olhar e o silenciar do mar; e um homem que tinha marchado de um lado a outro e ficou de pé, imóvel, diante deles. Enquanto isso, ele via que Cam metia os dedos na água encarando a costa e não dizia nada. Não, ela não vai se entregar, ele pensou; ela é diferente, ele pensou. Bem, se Cam não queria responder, não mais a perturbaria, decidiu Sr. Ramsay procurando por um livro no bolso. Mas ela queria responder, ela desejava apaixonadamente mover qualquer obstáculo que freava sua língua para falar, Oh sim, Frisk. Vou chamá-lo assim, ela queria dizer, Não era esse o cachorro que você encontrou sozinho no brejo? Mas mesmo tentando, ela não conseguia pensar em nada para dizer, era feroz e leal ao pacto, mas queria transmitir ao pai uma prova do amor que sentia por ele, sem que James suspeitasse. Ela pensou, mergulhando a mão (e agora o filho de Macalister pegava um peixe que ficou se batendo no chão sangrando pelas guelras), olhando para James – que mantinha os olhos calmos na vela, ou olhava de vez em quando o horizonte, você não está exposto a isso, a essa pressão e divisão de sentimentos, a essa extraordinária tentação. Seu pai estava mexendo nos bolsos; logo encontraria o livro. Ninguém a atraía mais, as mãos dele eram bonitas e também os pés, a voz, as palavras e a pressa, o temperamento, a estranheza, a paixão, ele gritando diante de todos: nós perecemos sozinhos; e sua distância. (Ele abriu o livro.) Mas o que continuava intolerável, ela pensou agitando-se e assistindo ao filho de Macalister puxar o anzol das guelras de outro peixe, era essa rude cegueira e a tirania dele que envenenavam sua infância e faziam surgir tempestades cada vez mais fortes, tanto que mesmo agora ela despertava à noite, tremendo de raiva e lembrando algumas ordens dele; alguma insolência: “faça isso”, “faça aquilo”; seu controle: “submeta-se a mim”.
Então ela não disse nada, mas olhou obstinada e tristemente para a praia, enrolada num manto de paz; como se as pessoas lá tivessem dormido, ela pensou que seriam livres como fumaça, livres para ir e vir como fantasmas. Eles não sofrem, pensou.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Conversa de Casal - Discussão

Ele: Tsc!
Ela: ...
Ele: Tsc!Tsc!
Ela: Tsc, o que?
Ele: Você tá fazendo “tsc”, por quê?
Ela: Porque sim, oras, deixa de ser implicante.
Ele: Eu sou implicante.
Ela: Que coisa.
Ele: Coisa, não, eu sou coiso. Coisa é você!
Ela: Eu não sou coisa, eu sou Pessoa.

E ela jogou seu estatuto ontológico superior sobre ele.

*Texto escrito em parceria com o Coiso.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Terra estrangeira


Julia caminhava aquele dia sem pensar no destino. Saiu de casa disposta a andar pela vizinhança sem se importar muito com o tempo que demoraria nem com o que encontraria, ou onde pararia. Ela apenas caminhava, e assim chegou a uma ampla praça. A praça tinha cheiro de terra molhada e Julia se deu conta de que não conhecia aquele lugar. Engraçado, porque todo o resto do caminho era tão familiar que ela sequer pensou estar perdida.
Parou um instante para observar com cuidado todo o lugar. Era uma bela praça, e muito tranquila, não passava muita gente por ali. Ficou surpresa novamente por não se lembrar daquela praça em nenhum momento anterior, e ela morava ali no bairro há bastante tempo.
A praça era meio escondida, no meio de uma rua fechada. Havia um prédio alto de três andares que preenchia toda a rua, no centro tinha uma fonte redonda, com uma estátua não muito alta rodeada por um pedaço de mármore – a fonte estava seca, não era usada há algum tempo –, dos lados esquerdo e direito prédios não muito grandes cercavam a praça. No lado esquerdo havia uma bela casa com um jardim na frente. No lado direito tinham algumas casas, nenhuma com mais de dois andares. A praça era toda de pedras e ao fundo havia duas árvores, uma à direita outra à esquerda, cercadas por um quadrado de grama e algumas flores. Também lá no fundo, entre as árvores havia um banco que estava enferrujado e sujo. E depois das árvores, um rio. 
Julia parecia estar dentro de um sonho em que não conseguia reconhecer aquele lugar. Quando subiu o degrau que separava a praça da rua, quase que involuntariamente, tropeçou por causa do movimento ligeiro de um inseto que voou rodeando-a muito rapidamente. Tentou prendê-lo, sem sucesso. Desistiu do inseto e tentou seguir na sua exploração àquele ambiente novo. Caminhando um pouco para dentro da praça novamente sentiu o rodopiar de um inseto – de um outro ou do mesmo, vai saber –, e desta vez foi bem sucedida: capturou-o com a mão direita num movimento tão rápido e forte quanto o bicho. Mas o inseto não deu tempo de Julia pensar no que faria com ele, aplicou-lhe um ferrão que ela não teve outra saída senão abrir a mão e deixá-lo ir. Quando Julia olhou para a palma da sua mão direita viu uma enorme bolha que latejava. Não era dor o que ela sentia, era  incômodo em ver que algo em sua mão poderia explodir sem nem mesmo entender como.
Despertou. E pôs-se a explorar mais o lugar. Deu uma volta inteira pela praça observando com cuidado todos os lados, todos os detalhes, todas as janelas verdes das casas. Por fim decidiu sentar-se junto à fonte.
Era fim de tarde, e as casas faziam sombra ao meio da praça, um bom lugar para ter visão ampla de tudo. Julia se sentou, encostou-se à fonte de frente para o rio e contemplou o lugar. Apesar do espanto e da estranheza causadas no começo Julia agora se sentia de volta à vizinhança. Não sentia mais que aquela pracinha era distante ou que fosse alguma novidade. Ela nem se deu conta do quanto ficou ali sentada. O sol também parecia estar no mesmo lugar o tempo inteiro, as horas pareciam não passar e Julia não queria mesmo que passassem.
Por fim, refeita da angústia que a levou até ali, Julia levantou-se em tom de despedida, prometendo para si mesma que voltaria. Um lugar tão simples e tão cativante ela não poderia deixar que fosse esquecido com qualquer ligeireza. Voltaria, sim, guardaria na mente o mapa do caminho de volta dali até sua casa. Não deve ser longe, pensou. E quando se levantou olhou mais uma vez a praça inteira querendo, novamente, guardar cada detalhe do lugar. Deu a volta em toda a praça com o olhar, voltou ao ponto inicial e respirou fundo – quase em lamentação. Percebeu que uma menina corria atrás de sua mãe, chamando por ela. Foi muito rápida a cena, porém Julia se deu conta neste instante de que o tempo tinha passado, e que não fazia ideia de que horas poderiam ser, que o céu e o sol lhe enganaram, e os seus ouvidos também – ela não escutou ninguém passar por ali até decidir se despedir da praça.
Julia desceu o degrau que separava a rua da praça e tomou o lado da rua por onde veio, assim seria mais fácil lembrar o caminho de volta. 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Queijos e Vinhos


Choveu a noite inteira. Os planos para o domingo diluíram-se com a tempestade e os cinco amigos ficaram sem saber se o encontro combinado há semanas aconteceria realmente. Não se viam com freqüência. Mas quando acertavam essas ocasiões os momentos juntos eram marcantes. Era apenas uma desculpa para brindarem a presença uns dos outros.
O encontro, como seria? O piquenique no domingo foi decidido em correspondências eletrônicas nas últimas semanas, a única comunicação possível nestes dias de trabalhos e família que exigem urgência. E agora teriam de mudar a decisão.
Está fora de questão para hoje, não é agradável banquetear-se com a grama e a terra molhadas. Ah, pena, um dia perdido. Mas quando se encontrariam novamente? Quando filhos, maridos e teses permitissem. Mas a depender das teses, não seria logo. Seria melhor deixar o encontro para a próxima semana e esperar que o sol os agraciasse com sua presença ou se encontrarem mais tarde, num lugar igualmente acolhedor e celebrarem ainda assim?
Decidiram em breves mensagens coletivas pelo celular que se encontrariam no quartel general, o lugar de sempre: o apartamento do único casal sem filhos do grupo. Um apartamento antigo numa parte tranqüila da cidade que fica numa ruazinha estreita no centro, tem uma sala ampla, um gato recém chegado a se esconder dos visitantes, e algumas garrafas de vinho levadas pelos convidados. Era um banquete e a verdade era também uma das convidadas.
O local foi decidido na última hora, e o horário também. Combinaram às cinco. Chegaram-se todos. Não pontualmente, mas isso é bastante comum nos encontros entre os amigos. Mesmo com alguns atrasos a noite correu bem, como era de se esperar. E por algum tempo as demandas de trabalho concentraram a temática da conversa, mas logo foram adiadas para a segunda-feira essas inconveniências.
O que seria um piquenique no final da manhã se transformou numa noite de banquete divino. E este era um bom momento para esquecer que o domingo já estava terminando e teriam de enfrentar a segunda-feira, agora com mais ânimo, ou quem sabe com uma ressaca – para lembrar-lhes de que, pelo menos, o dia anterior não foi em vão.
As comidinhas e os vinhos regavam esse encontro. O domingo não foi como o planejado, seguiu outro curso. Conversas e risadas desaceleravam a noite que passava e ninguém se dava conta. Ninguém se preocupava naquele momento.  Nenhum deles olhava para o relógio procurando uma desculpa para ir, não pensavam nas horas, na rotina, nas obrigações.
A chuva cessou, mas ainda não dava espaço para o luar. Os amigos chegaram-se aos poucos até a varanda. As folhas das plantas ainda pingavam, tinha cheiro de coisa nova e terra molhada. Sentaram-se na varanda. Ficaram ali a observar a rua e o asfalto ainda molhado, foram envolvidos por uma leve corrente de frio. O abraço suave do orvalho, as bochechas quentes, os lábios rosados, tudo isso os envolvia.
Não precisavam dizer tudo, dizer o quanto que se amavam, estavam ali somente, eram os melhores amigos brindando à vida e ao amor. Falavam sobre o tempo. As vozes baixas acompanhavam o ritmo da noite e das nuvens que dançavam sobre eles; o friozinho da noite os abraçava naquele instante revelando que as horas não foram sentidas naquele domingo. Não tinham pressa. Contemplavam o relento da noite procurando a beleza e a razão de todas as coisas. Estavam repletos.
Porém, a segunda-feira começa a dar sinais de chegada e mesmo a noite irresistível não consegue pará-la. Ei-la: é hora de irem todos, hora de voltarem para os maridos e filhos e, quem sabe, para as teses. As taças, os guardanapos, as garrafas, os talheres voltarão para seus lugares quando a luz do dia chegar, não agora.

*
João não dormiu ao chegar a casa, não se importava com o que deveria fazer quando o dia chegasse. As tarefas, o trabalho que sempre lhe chamava logo cedo, nada conduziu João para a cama. Ele queria ver o sol nascer. Poucas vezes fazia isso. Riu sozinho quando se deu conta da loucura que planejava. Largaria tudo, pelo menos hoje.
Foi arrebatado. João se lembrava da noite que passara com os amigos, de toda a vida que eles despertaram. Abraçou-se a um lençol, encostou a cabeça na janela e observava os carros e ônibus que abriam a avenida para mais um dia de outros. Quando viu que o sol se aproximava sentou-se no sofá para escrever.
João piscava os olhos, a noite o vencia.

*
O dia já desperta e com ele as obrigações, o café forte, o remédio para curar a dor de cabeça. E cada um, do seu lugar, no seu tempo, sai de casa outra vez. Desta vez para outro ritual, o burocrático e sem graça, anestésico. A segunda-feira passa, e os cinco enófilos se distanciam cada vez mais da noite anterior, consumidos pelas tarefas do dia, quando são lembrados por João, através de uma longa mensagem por email, do quanto a reunião na noite anterior foi bela e importante.
A embriaguez do domingo retorna.
João, o mais jovem a se juntar ao grupo, a peça que faltava. E que a partir de agora não voltaria mais. Foi a última mensagem de João. Mensagem pronta, proposital e que espantou a todos com palavras tão bonitas sobre o significado daquele encontro para ele. João se entregou. Mas não tinha importância só para ele, tinha para todos, e com aquela mensagem cada um, do seu lugar, percebeu isso. 
O telefone toca, não é João, ele não é mais, ele quis e decidiu assim.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Deixa que a vida se encarrega


Meu avô contava muitas histórias. Histórias de quando eu estava muito longe de existir. E eu sempre gostei de ouvi-las. Algumas me deixavam angustiado, mas ouvia atentamente, ainda assim fascinado com coisas diferentes das que eu conhecia. As imagens e pessoas se criavam na minha mente num mundo cheio de cores e de caretas. Meu avô ainda tinha bastante energia, e nossas conversas duravam horas e mais horas. Ele sentado em sua cadeira de balanço e eu ali no chão, ao pé dele. Mesmo as conversas mais banais também nos levavam a debates longos e vigorosos. Ele dizia que gostava quando discutíamos. Mas em geral era ele falando e eu ali sentado ao lado ouvindo.
O vô acordava cedo e depois de beber um só gole de café ia limpar o quintal e cuidar da horta. Depois almoçava. Depois do almoço sentava-se no sofá do quarto com a companhia de um livro e logo pegava no sono. Quando acordava beliscava um pedaço de pão que ficava sobre a mesa, bebia outro gole de café e arrastava sua velha cadeira de balanço para a varanda. Parou de trabalhar na feira, mas não abandonou nem a horta, nem as histórias.
Ali ficava com a caneca de café vazia até não ter mais estrela.
Ele contava quase sempre a mesma coisa, de como os pais dele vieram da roça e de como ele criou meu pai só cuidando de jardins e trabalhando nas feiras pela cidade.
Lá no quintal dos fundos tinha uma horta pequena, mas que o vô cuidava com carinho todos os dias. Ele sempre cultivou ali. E foi com aquela horta que criou os filhos. Com a horta, com a feira e com as histórias. E ele continuou fazendo isso por muito tempo ainda.
Quando chegava o fim de semana eu ia para a casa dos meus avós, ansioso por ouvir aquelas histórias. Tempos depois descobri que não eram as histórias que me fascinavam. Era estar ali com o meu avô. Era aquele momento que nos unia tão intimamente.
Acho que nunca o beijei ou fui beijado por ele. Para dizer a verdade, ele não tinha muito jeito para isso, não era o tipo de pessoa que tem tato, que é afetuosa com os outros. Isso é engraçado, porque ao mesmo tempo em que eu não me lembro de ter visto o vô demonstrando afeto por ninguém – a não ser minha vó, a quem ele beijava a testa todos os dias antes das refeições, ele devia estar agradecendo, não sei – lembro-me dele como alguém muito carinhoso, de um jeito peculiar, talvez.
Mas, exceto por essas demonstrações com a minha avó ele não fazia o mesmo nem com as filhas e menos ainda com os filhos homens; nem os netos o amoleciam, essas crianças às vezes imprudentes que abraçam os seus esperando o mesmo gesto. Parecem duas pessoas: um é austero e fala pouco com os filhos; o outro é jovial, conta as histórias do João-sem-dente lá da feira e sempre me olha direto nos olhos como que para me fazer entender aquela lição.
Eu sempre ficava ansioso para chegar o fim de semana ou as férias, porque era quando eu passava mais tempo com ele.
No nosso último final de semana ele estava calado, não conversamos muito. Fiquei triste, de um jeito involuntário eu esperava por aquilo, não queria que acabasse. O vô ficou o sábado inteiro calado, fez tudo como sempre fazia: um gole de café à tarde depois da sesta e sentou-se na cadeira de balanço na varanda. Não falou muito, não teve história alguma. À noite, antes de dormir ele foi até o quartinho onde eu dormia, sentou-se na beira da cama, segurou forte a minha mão e me disse boa noite. No dia seguinte, quando acordei e ele ainda não tinha se levantado fui até o quarto dele e exigi uma história, uma conversa que fosse. Com os olhos pequenos e voz bem baixa ele disse: “hoje não, criança”. 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Entre as nuvens

Vejo passar brilhante
um pássaro apressado no alto céu.
 - é seu caminho de todos os dias;
E eu me ponho a observá-lo.
Hoje só
que fui reparar no pássaro dourado.
Ele não pousa, passa todos os dias sobre minha janela
- passa somente por ter de passar.