sábado, 27 de agosto de 2011

Dias de Rudeza

Rudeza vivia numa grande cidade. A maior, a mais bonita, mais agitada, mais populosa etc. e tal. Ela até gostava de morar ali, mas às vezes pensava se gostava por hábito simplesmente. Afinal, só conhecia este lugar desde que nasceu. E a cidade sempre foi assim, populosa, grande, prédios altos, tanto quanto Rudeza se lembra. Porém, raros os momentos em que Rudeza prestava atenção à bela cidade ao seu redor. O motivo era bastante comum: trabalhava demais. Eis o grande problema de todo cidadão [e toda cidadã!] das grandes cidades do mundo: o excesso de trabalho.
Trabalhar é bom, não só pelo salário que se recebe pelo que se faz [há aqueles que nem isso!], mas o “fazer”, a tarefa diária [ou não, depende do tipo de trabalho que se realiza!], o ocupar-se de algo, isso é bom e por isso Rudeza trabalhava. Ela não sabia o que era viver sem trabalhar, e talvez por isso o fizesse demasiadamente. Quando nos parcos momentos em que olhava sua história não se lembrava de nenhum momento de puro ócio. O trabalho era sua vida, sua vida não existia sem o trabalho.
De tanto trabalhar, até mesmo esta questão – antes inquestionável – se coloca à sua frente. O tipo de trabalho era ruim, o salário pior e tudo que remetesse a ele só deixavam o temperamento de Rudeza ainda mais desgastado. Já pela manhã encontrava com o síndico do prédio, sr. Mau Humor. Rudeza caminhava um pouco, com as pessoas sempre esbarrando nela e sem nunca se desculparem por isso. Bem, se não havia remédio para o tédio, aliás seu nome Rudeza e não Depressão, ela subia no ônibus em direção ao trabalho e pensava que todas as pessoas no mundo, talvez nem todas, só as da cidade, eram como aquele motorista que fazia o mesmo trajeto e as mesmas barbaridades todos os dias: estúpidas!
O que resta a Rudeza neste mundo de gente estúpida? Ela não gostava de se perguntar essas coisas pois logo se irritava. Então deixava toda lógica e toda física de lado, recolhia-se e empurrava as pessoas que resmungavam e se espremiam dentro do mesmo ônibus. Eles nunca ouviram que “dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”? Rudeza também não, mas as coisas que lhe passavam pela cabeça certamente eram parecidas com isso, noutras formulações.
Enfim chegava ao trabalho e nele encontrava as pessoas, o escritório, os papéis para assinar, o cubículo que era sua sala, os computadores e, outra vez, as pessoas. O que poderia irritar mais Rudeza: um computador que não funciona ou uma pessoa que pensa que funciona? Nem mesmo Rudeza sabia. Infelizmente ela não podia ignorar seus “companheiros” de trabalho, eram seus subordinados.
E assim seguiam os dias de trabalho de Rudeza. Mais cafezinho, mais engarrafamento, mais pessoas com assuntos irrelevantes, ônibus lotado, idas e vindas de casa para o trabalho. E ainda todo aquele trabalho para fazer em casa. Todos os dias as mesmas coisas, as mesmas pessoas. O tempo corria, e Rudeza só pensava como ele custava a passar. Os meses e os dias caminhavam como sempre e Rudeza continuava a viver no seu modo singular de responder às pessoas: sorriso irônico, uma frase mordaz [quando não um empurrão]. Até que um dia, já bem velha com a mesma impaciência de sempre, subiu num ônibus para ir a um lugar qualquer, o motorista fez uma curva em alta velocidade, Rudeza caiu e pensou que todas as pessoas no mundo eram como aquele motorista: estúpidas!

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O diário de Catarina

Os dias se passavam e Catarina percebeu que precisava de algo para se distrair. Mas algo que fosse sério, algo que não fosse trabalho, mas que poderia lhe ajudar a decidir sobre os rumos da própria vida. “Como? De que maneira vou encontrar um hobby?” pensava.
Gostava de escrever e pensou em exercitar-se, faria disso a sua distração. “Está certo, o exercício da escrita é sempre interessante e há muito estou afastada dessa atividade que me parece tão vital”, pensou ela, decidida. Porém, não tinha deixado absolutamente de escrever. As desejadas traduções a realizar tinham ficado um pouco de lado, é verdade, talvez nem estivessem mais em segundo plano porque Catarina estava tomada pelo trabalho, como a maioria das pessoas nestes tempos infernais. Vez ou outra escrevia seus contos, críticas, resenhas e até ensaiava artigos acadêmicos.
Fato era que Catarina foi consumida por todas as outras coisas, totalmente absorvida pelo trabalho [do qual ela nem gostava tanto assim!] e se afastava do que tinha amor por fazer.
“Ah, já sei: vou escrever sobre filmes!”. Filmes? Cinema? “Já nem me lembro da última vez em que fui ao cinema, deve fazer muito tempo, ou o filme não foi tão bom assim” pensou, tentando se lembrar, pelo menos, qual tinha sido a última película assistida. “Argh, preciso me libertar destas coisas, tantas coisas...”.
Depois de tanto estresse por causa do trabalho e a desordem na sua vida, Catarina decidiu relembrar o que escrevia quando adolescente. Encontrou um diário dentro de uma caixa na biblioteca. “Ainda bem que só eu estou lendo isso, quanta bobagem, coisa de criança. Coisa de criança que não sabe pegar num lápis sequer...”, pensou, muito crítica consigo mesma [como sempre].
Lendo aquelas frases e sensações mesmo tão pueris manteve a decisão de voltar a escrever. “Um diário, é isso, assim ninguém precisa ler mesmo”, e um sorriso esboçou-se em seu rosto. Pronto. A missão agora era encontrar um diário ou caderno e pôr em prática sua decisão. Poderia escrever ficção científica [“mas não entendo nada desses termos científicos de blábláblá...” pensava] ou romance. Depois de ler seu diário antigo já tinha decidido que poesia “só as dos outros, eu não tenho vocação para isso”, pensou, sentenciando. Por fim, pensou que poderia escrever sobre qualquer coisa: o mundo, a política, a vida, os amigos... “eu estou aqui, no mundo, na rua, no ônibus, no barco, caminhando pela cidade. E o que eu vir e escrever, guardar, pode ser só uma impressão, pode ser ficção ou loucura, mas a vida é um pouco disso, né?”. Estava satisfeita, por enquanto.
“Melhor guardar esse diário horrendo”, ponderou. Antes, porém, de esquecer novamente o antigo diário, ela encontrou um trecho de um poema [de Cecília Meireles] do qual gostava bastante; este trecho serviria de epígrafe ao seu novo diário:
No mistério do sem-fim

equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta