Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu.
Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim
A história da
escritora Clarice Lispector, cuja obra ainda não estou muito familiarizada, me prendeu logo no
começo com os detalhes de sua origem. Ela nasceu na Ucrânia, região que nestes
últimos tempos tem recebido olhares atentos de todo o mundo por ser alvo de disputas políticas e econômicas, uma região de tensão entre diferentes grupos desde muito tempo. Além
disso, por ser judia essas condições são ainda mais intrigantes para mim que
conheço pouco ou nada do povo judeu.
A vida e a obra de Clarice possuem ligações com
seu tempo, com o que acontece no mundo ao redor. Ela passou por uma guerra, viu o surgimento de uma ditadura no Brasil e a sua origem desde os
primeiros capítulos me cativaram, como a descrição da região onde a família viveu
antes da fuga, as condições que levaram a seu nascimento etc. e
tal. o biógrafo Benjamin Moser mostra o processo
que levou a família Lispector a emigrar da Ucrânia: pobreza, guerra, perseguição, e conecta
esses elementos à obra de Clarice, aos seus personagens e ela própria. Uma
esfinge como diziam alguns de seus amigos, uma mulher que “já foi descrita como quase tudo: nativa
e estrangeira, judia e cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e
adulta, animal e pessoa, mulher e dona de casa”[1].
A família Lispector chegou em Maceió (AL) na região Nordeste do Brasil, quando Clarice ainda era muito pequena e foi aqui no Brasil que a família reestruturou sua vida, por isso não é difícil dizer que a escritora não seja brasileira, apesar dos traços e até certo sotaque estrangeiros que ela possuía. A família enfrentou dificuldades financeiras, teve de lidar com a doença de Mania [mãe de Clarice], as mudanças de uma cidade para outra; de Maceió foram para Recife (PE) e então para o Rio de Janeiro (RJ).
Clarice estudou, formou-se, tinha uma relação de profundo carinho com as irmãs, casou-se com um diplomata, teve dois filhos, publicou romances e contos, escreveu para jornais, e mesmo entre as lindas paisagens da Itália ou Suíça ela sentia que seu lugar era mesmo no Rio de Janeiro.
Clarice estudou, formou-se, tinha uma relação de profundo carinho com as irmãs, casou-se com um diplomata, teve dois filhos, publicou romances e contos, escreveu para jornais, e mesmo entre as lindas paisagens da Itália ou Suíça ela sentia que seu lugar era mesmo no Rio de Janeiro.
Foto: Elaine Pinto |
Dadas as circunstâncias brutais da primeira infância de Clarice, seria difícil que ela pudesse chegar a uma conclusão diferente de que a vida não é humana e não tem "valor humano" algum. Sua existência não tinha mais razão de ser que a da barata. Pura sorte era a única razão pela qual ela sobrevivera aos horrores ucranianos enquanto milhões de outros pereceram. A única conclusão lógica era que a natureza do mundo é aleatória e sem sentido, mas compreender a natureza animal e aleatória do mundo era necessariamente rejeitar a moral convencional, o que implicava atribuir significados humanos ao mundo inumano.[2]
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Estabeleci uma meta: ler dois capítulos por dia da biografia, e assim segui num ritmo viciante de leitura. Terminava os dois capítulos programados para o dia mas a intensidade de Clarice era tanta que eu lia mais, ia além. Foi assim que as seiscentas e cinquenta e duas páginas sobre sua vida não me assustaram e quando vi em pouco tempo havia terminado. Ainda assim, apesar de tamanha energia é tarefa difícil resumir todas estas páginas em algumas linhas daqui do blog.
A cada nova página eu me via fascinada com a vida de Clarice Lispector. Ela era uma pessoa comum no sentido de que tinha preocupações banais, como os estudos, os filhos, a casa, o trabalho. Mas era ao mesmo tempo extraordinária, inquietante. Não só com o que escrevia, mas nas suas relações com os outros e com o mundo.
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Conforme contou a um entrevistador (provavelmente seu primeiro), "escrevo porque encontro nisso um prazer que não sei traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta minha alma falando e cantando, às vezes chorando..." [3]
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Lendo assim sua história, suas cartas a amigos e trechos de suas obras, a impressão que Clarice causava a todos, principalmente aos leitores, sentia-me próxima dela, íntima. Mas às vezes, à medida que ela envelhecia, que o tempo para ela seguia em frente, parecia que a minha vitalidade [também] definhava. Não sei exatamente se a minha, a do biógrafo ou a da própria Clarice. [Ou será que eu, tomada pela imagem de esfinge, ou de bruxa, estava enfeitiçada e aos poucos o efeito do feitiço passou?] No fim percebi que Clarice lutou muito, lutou arduamente para ser a mulher que foi, para ser a escritora que foi.
Foto: Catraca Livre |
Cheguei mesmo à conclusão de que escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor [4]
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Clarice ainda é uma
névoa para mim, sempre que me aproximo ela desaparece no ar como as pequenas nuvens que se espalham quando são tocadas pela asa do avião. E mesmo como névoa ela se tornou uma inspiração por ser tão extraordinária em sua obra [dos trechos que se encontram na biografia e dos contos que li] e também na vida, como contam seus amigos.
#BoaLeitura
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Referências:
[1] MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução José Geraldo Couto. SP: CosacNaify, 2013. p.18
[2] Idem, p. 108
[3] Idem, p.240
[4] Idem, p.293