domingo, 7 de setembro de 2014

Menina*


Para a menina, ele era alguém a ser temido e evitado. Todas as manhãs antes de ir ao trabalho ele vinha até o quarto dela e lhe beijava secamente, ao que ela respondia com “Até logo, pai”. E, ah, o alívio quando ela ouvia cada vez mais distante o som do carro pela estrada!

À noite, ele se apoiava sobre o corrimão ao chegar a casa, ela ouvia sua voz grave na sala. “Traga-me o chá na sala de estar... O jornal ainda não chegou? Alguém o levou de novo para a cozinha? Mulher, veja se meu jornal está lá fora – e traga meus chinelos.”

“Kezia,” a mãe a chamava, “se você for uma boa menina você vai descer e tirar as botas do papai.” 

Lentamente a menina escorregava pela escada, segurando firme o corrimão com uma das mãos – ia mais lentamente ainda, pela sala, e empurrava a porta do escritório.

A essa altura ele já estava com os óculos e através deles olhava de um jeito assustador para ela.

“Bem, Kezia, mexa-se e tire essas botas e as leve para fora. Você se comportou bem hoje?”

“Eu n-n-não sei, pai.”

“Você n-não sabe? Se você gagueja assim sua mãe vai ter de te levar ao médico.”
Ela nunca gaguejava com outras pessoas – ao contrário, era até elogiada – mas somente com o pai, porque ela tentava dizer as palavras corretamente com muita força.

“Qual é o problema? Por que esse olhar tão melancólico? Mulher, espero que você ensine a essa criança a não ter ideias suicidas... Aqui, Kezia, ponha minha xícara de volta na mesa – com cuidado; suas mãos  tremem como as mãos de uma velha. E tente manter o lenço dentro do bolso, não sobre os ombros.”

“S-s-sim, pai.”

Aos domingos ela se sentava no banco junto a ele na igreja, ouvindo quando ele cantava numa voz alta e clara, observando quando ele fazia pequenas anotações com um lápis azul de madeira no verso de um envelope durante o sermão – seus olhos apertados como uma fenda – com uma das mãos batia alguma coisa silenciosa sobre o peitoril do banco. Ele disse suas orações tão alto que ela teve a certeza de que Deus escutaria mais a ele do que ao pastor.

Ele era tão grande – suas mãos e seu pescoço, e principalmente a boca quando ele bocejava. Pensar nele dentro do quarto dela era como pensar num gigante.

Nas tardes de domingo a avó a mandava para a sala de visitas no seu vestido marrom de veludo para ter uma “agradável conversa com o pai e a mãe”. Mas a menina sempre encontrava a mãe lendo “The Sketch” e o pai deitado no sofá, o lenço dele no rosto, os pés sobre a melhor almofada, dormindo tão profundamente que chegava a roncar.

Ela, sentada no banco do piano, o observava com olhar grave até que ele acordasse e se esticasse, e perguntasse as horas – e então olhasse para ela.

“Não me encare assim, Kezia. Você parece uma coruja marrom.”

Um dia, quando ela ficou em casa resfriada, a avó lhe disse que o aniversário do pai seria na próxima semana, e sugeriu que ela fizesse para ele uma alfineteira de presente com um belo retalho de seda.

Com muito esforço, e dois pedaços de algodão, a menina costurou os três lados. Mas iria preencher com o que? Esse era o problema. A avó estava no jardim, e ela foi procurar no quarto da mãe alguns retalhos. Em cima da cama a menina descobriu alguns pedaços de um papel fino, juntou-os, rasgou em pedaços menores, e os enfiou na caixinha, e então costurou o lado que faltava.

Naquela noite houve uma agitação na casa. O grande discurso do pai para a Autoridade Portuária tinha se perdido. Os cômodos foram revirados – perguntaram aos empregados. Por fim, a mãe foi até o quarto da menina.

“Kesia, você não viu um papéis em cima da mesa do nosso quarto, viu?”

“Ah, sim”, ela disse. “Eu os rasguei para preparar minha surpresa.”

“O que?!” gritou a mãe. “Desça imediatamente para a sala de jantar, agora”

E ela foi arrastada para onde o pai estava andando de um lado a outro, com as mãos para trás.

“Então?” ele disse rispidamente.
A mãe explicou.

Ele parou e estupefato encarou a menina.

“Você fez o que?”

“N-n-não,” ela murmurou.

“Mulher, vá até o quarto dela e me traga esta porcaria – e ponha essa criança na cama agora.”

Chorando muito, sem conseguir explicar, ela deitou-se no quarto sombrio assistindo a luz da noite passar através das cortinas e deixar um pequeno e triste desenho no chão.

Então o pai entrou no quarto com uma régua nas mãos.

“Vou bater em você com isso,” ele disse.

“Oh, não, não!” ela gritou, escondendo-se debaixo das cobertas.
Ele as jogou para longe.

“Sente-se,” ele ordenou, “e estenda as mãos. Você deve aprender de uma vez por todas a não mexer no que não te pertence.”.

“Mas era para o seu a-a-aniversário.”

A régua caiu sobre suas pequenas e róseas palmas.

Horas depois, quando a avó a enrolou no xale e a ninou na cadeira de balanço, a menina a abraçou forte no seu corpo frágil.

“Para que Jesus criou os pais?” ela se queixou.

“Aqui, um lenço limpo, querida, com um pouco da minha água de lavanda nele. Vá dormir, pequenina; amanhã você terá esquecido tudo isso. Eu tentei explicar ao seu pai, mas ele estava muito irritado para ouvir qualquer coisa esta noite.”

Mas a menina nunca esqueceu. Na vez seguinte em que o viu, ela escondeu as mãos para trás, e suas bochechas ficaram vermelhas.

Os Macdonalds moravam logo ao lado. Tinham cinco crianças. Olhando através de um buraco na cerca da horta do quintal a menina os viu à tarde brincando de pique. O pai com o bebê Mac nos ombros e duas meninas penduradas na barra do casaco corria dando voltas no canteiro, balançando-as e rindo. Uma vez ela viu os meninos correndo atrás dele com a mangueira – correndo atrás dele com a mangueira – e ele os agarrou, e fez cócegas até eles soluçarem. Então ela entendeu que existem tipos diferentes de pais.

Um dia, de repente, a mãe ficou doente, e ela e a avó foram até a cidade de carro.

A menina ficou sozinha em casa com Alice, a “general”. Estava tudo bem durante o dia, mas quando Alice a colocou para dormir ela ficou, subitamente, com medo.

“O que vou fazer se eu tiver um pesadelo?” ela perguntou. “Eu sempre tenho pesadelos, e então vovó me põe na cama junto com ela – eu não posso ficar no escuro – tudo fica assustador... O que vou fazer?”

“Você vai dormir, criança,” disse Alice, tirando as meias dela e jogando-as na grade da cama, “e eu não vou chamar seu pai e acordá-lo.”

Mas o mesmo pesadelo de sempre surgiu – o açougueiro com uma faca e uma corda que se aproximava, e se aproximava, sorrindo de um jeito horrível, e ela não conseguia se mexer, podia apenas levantar, chorando, “Vovó, vovó!”. Ela acordou trêmula, viu o pai ao lado da cama, com uma vela na mão.

“Qual o problema?” ele disse.

“Oh, o açougueiro – uma faca – eu quero a vovó.” Ele soprou a vela, curvou-se e pegou a menina nos braços, carregando-a através de uma passagem para o quarto maior. Um jornal estava sobre a cama – a metade de um cigarro balançava ao lado da luminária. Ele jogou o papel no chão, apagou o cigarro, então deitou a menina. Ele se deitou ao lado dela. Já quase dormindo, ainda com o sorriso do açougueiro na sua direção, ela pareceu deslizar para perto do pai, aninhou a cabeça debaixo do seu braço, segurou-se firme ao pijama dele.

Então não importava mais a escuridão; ela deitou. “Assim, esfregue seus pés nas minhas pernas para se aquecer,” disse o pai.

Cansado, ele dormiu antes da menina. Um sentimento engraçado lhe apareceu. Pobre pai! Não é tão grande, afinal – e não tem ninguém para cuidar dele... Ele era mais firme que a avó, mas era de uma firmeza boa.
...E ele tinha de trabalhar todos os dias e estava cansado demais para ser o Sr. Macdonald... Ela rasgou todas as suas belas palavras... E se comoveu de repente, e suspirou.

“Qual o problema?” perguntou o pai. “Outro sonho?”


“Oh,” disse a menina, “minha cabeça está no seu coração; eu posso ouvi-lo. Que coração grande você tem, querido pai”.


*Tradução minha do conto "The Little Girl" (1912), de Katherine Mansfield. 
in: "Something Childish, and other stories".