domingo, 9 de dezembro de 2012

Deus está olhando


Num fim de tarde de um dia quente e bonito, aos poucos nuvens cinzentas aparecem no céu azul brilhante. Algumas gotas de chuva chegam a cair, mas não chegam a molhar. Não entristecem o dia. O sol não se foi de todo, está lento agora, faz uma longa pausa como se não quisesse ir embora. E não está mais sozinho.

Quando o céu fica assim, de manhã até a tarde, num azul radiante, no fim do dia cria uma linha rósea suave como que querendo deixar uma lembrança de todo esse dia. Os morros e prédios da cidade ali abaixo, os barcos e as igrejas, tudo, parecem um quadro; parecem obra do divino, ou seja lá que nome se dá. Mas que não é humano. Humano é quem vê, quem procura a beleza que não é sua. Nem mesmo a beleza da cidade e suas obras de arte em concreto.

Quando o céu fica assim e o sol se deixa envolver pelo cinzento que também deseja ser estrela, os carros param. O tempo para, e até os pássaros voam mais devagar para contemplar a harmonia desses encontros.

O céu, o sol, as nuvens, a cidade...

O sol até fica mais imponente, o rei não se entrega facilmente, encontra a fraqueza de quem o ataca. Ele não está mais na sua majestosa forma de bola amarela, é verdade, mas também não se deixa esconder pelas nuvens carregadas que o cercam. Ele dá um jeito, e participa da festa. Uma festa que celebraria sua rendição, virou a festa em sua contemplação  em que seus raios seduzem as nuvens, e elas, entregues, se deixam envolver e os deixam passar. Assim o rei brilha.

O rei e sua corte se despedem, o tempo, os carros e a cidade agora tem pressa, querem acompanhar o cortejo. Todos estão presentes, e partem, e não há mais o que desejar daqui de baixo. Os homens se esquecem de contemplar.

domingo, 18 de novembro de 2012

Carta para Bernard


Meu caro amigo Bernard,


Fiquei muito feliz em receber notícias tuas. Sinto sua falta. Sinto falta das nossas conversas de volta para casa, quando viajávamos daquele antigo trabalho que, com todas as contradições, nos ensinou e mostrou que fazíamos algo errado. E por isso se tornou um castigo.
Pegávamos o ônibus já tarde da noite para modestos trabalhadores e atravessávamos a baía, pela ponte com suas luzes de todos os lados, os faróis dos carros na pista oposta, as luzes dos barcos logo abaixo nas águas escuras, e as luzes dos prédios e das favelas ao longe. A gente da cidade que movimentava a roda do progresso.
Era delicioso ter alguém com quem dividir essas observações. E nos espantávamos ao observar todas aquelas luzes, e imaginar quanta gente dormia em suas casas, barracos, quantos ainda iam para casa, quantos saíam para trabalhar... Aquelas luzes, ai, me dão certa nostalgia desde aquele tempo. Desde que meu caminho de volta teve de ser feito só. Por aqui o trabalho continua, e o castigo também. E o caminho com suas luzes e sua gente.
Só o meu companheiro de ironias é que falta.
Li tua carta no caminho de volta para casa, e fiquei emocionada. Tuas palavras me fizeram companhia na noite passada, até que eu retornasse. Tuas palavras e as luzes distantes.
Mas diga como estão todos?
Mande lembranças a Virginia, sinto que ela está sempre por perto, e é como se ela soubesse mais sobre mim do que eu mesma. Ou, quem sabe ela saiba dizer melhor do que eu o que eu penso que sou. Você acha que é mentira minha isso? Deixa p’ra lá, no fundo só quero os aplausos para os arroubos que cometo, reconhecimento...  As vaias eu dispenso, nisso sei que sou boa.
Como está o tempo por aí?
Aqui a primavera começou não faz muito, e às vezes nem parece que ela chegou. Choveu muito nos últimos dias, e você sabe como eu fico em dias chuvosos. Eles desenham o estado da minha alma. Procuro os monstros escondidos todos, eu os encontro e liberto e silencio uns e outros. Catarina anda calada ultimamente, nos distanciamos nestes tempos. Ela não entende que o tempo passa diferente para cada um. Mas eu fico triste com isso, não gosto de ficar longe dela.
Enfim, a primavera chuvosa traz à tona todos os desejos que é para lavar a alma mesmo.
Fico por aqui, aguardando novidades das terras arenosas. Dê lembranças a todos.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Só às vezes


- “Onde deixaste a caneta, garoto?”.
-  ...
-  “Onde foi parar o telefone? Eu, hein, parece que essas coisas andam sozinhas...”.

Cansada de procurar respostas e outros objetos pela casa, senta-se no sofá e joga as pernas para o alto. Um som estranho começa a se fazer presente, olha ao redor e não há ninguém. A fadiga provocada pela busca interminável ao telefone não lhe permitiu compreender aquele som, que ora aumentava ora diminuía. E a senhorinha, apesar de cansada, não parava de se mexer no sofá, talvez fosse incômodo com aquele soar inconstante.

Incomodada com o som, com o sumiço do telefone, com o neto – que ignorou sua pergunta e saiu para o quintal a brincar com os carrinhos –, e com um caroço que surgiu de repente no sofá, ela se levantou. Em seguida deu uma boa olhada naquilo que aparecera sem convite e fazia-se dono do seu cantinho no sofá. Um controle remoto. É, não era o telefone tão desejado, mas era, ao menos, a causa daquele barulho inconstante e insuportável.

“Ah, isso eu não procurava, mas ainda bem que achei”, disse e saiu. Concentrada na busca pelo telefone foi até a porta da varanda: “Ô, menino, você não viu o telefone, não?” ... A voz fraca não chegava aos ouvidos do garoto que balançava os carros de polícia e ambulâncias para dar realidade à sua brincadeira de desastres no trânsito.

Com o olhar perdido, fica parada na frente da porta, os braços apoiados na soleira, cruzados para trás. O menino brincava feliz. Cada um no seu mundo. Cada um esquecendo-se do que havia lá fora. A senhorinha só olhava, não pensava em nada. Não pensava mais no telefone, não pensava no controle remoto, no aparelho de som, na desatenção do neto. Ela só olhava, e naquele instante sentiu-se livre, sentiu-se jovem, sentiu-se cheia de vontades. Só com um olhar. E só às vezes olhava daquele jeito.

Depois que a vida foi seguindo, e as vontades deixadas de lado, ela não lembrava mais como era ter aquele olhar, como era ver o mundo assim sem interesse. É o mundo mais bonito que ela já viu. E é diferente desse mundo normal. Ela olhava às vezes assim e se perdia, perdia os pensamentos e os deveres. Só depois de se dava conta de que estava imersa nesse mundo de horizonte.

Então o telefone toca, e ela sai do transe. Volta a se encontrar no mundo normal. Volta a ser a senhorinha de sempre. Quem sabe o que lhe passou pela cabeça naqueles poucos instantes? O telefone toca. Toca, e não para. Insiste. Ela desperta e sai apressada em busca daquilo que tinha se transformado no objeto principal de sua tarde. Ao encontrar o telefone se pergunta, frustrada:

- “Me diz, meu Deus, por que é que eu faço essas coisas?”

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Fim de Jogo


Como disse Susana uma vez “não vejo a hora de 21-12-2012 chegar...” e ela disse não pensando no fim do mundo anunciado pelos Maias, mas por outras razões, as mesmas que as de Rebeca. Essa data parecia tão longe. O tempo passa, passa e nunca de chegar o fatídico dia do fim dos tempos. 

Há gente que não acredita nisso, há quem acredite, e muitas interpretações surgem para a profecia. Uma delas, bem do agrado de Rebeca era de que um novo tempo estava para surgir. Mas, como muitas das conjeturas para o futuro, não se podia dizer se o porvir seria bom ou mau. Somente quando esse “novo tempo” surgisse é que se poderia verificar. E era nisso que Rebeca acreditava, num novo tempo que com seus planos seria certamente um tempo melhor. Mas em seguida pensava “e se o mundo acabar mesmo, com uma grande explosão, de que vão servir todos esses planos?”, e Rebeca voltava a se recolher com seus projetos e lágrimas, entre os cobertores.

O tempo corria, corria, e nada do fim do mundo. Os sinais apareciam por todos os lados. As mudanças no clima, nas ideias, nos pseudo-sentimentos de Rebeca. Às vezes ela até se esquecia de que algo grandioso poderia estar prestes a acontecer. Quando se lembrava disso, pensava no que ficaria para trás, se teria lembranças do que já passou. Acreditava realmente na grande explosão.

E assim seguia em frente.

Porém o ânimo, a alma, não é uma qualidade forte em Rebeca. E isso para ela era uma contradição. Quando pensava na sua falta de ânimo para viver, a vida ordinária, pensava no seu nome: Rebeca Monteiro. É um nome imponente. Um nome que ressoa, que reverbera entre as paredes do banheiro quando cantada. Um nome que não condizia com aquela figura magra, de cabelos pretos, lisos, compridos, de ombros encolhidos, sorriso tímido, palavras fechadas... Rebeca era mulher sem charme, sem volúpia e vez ou outra até sentia falta disso. Sentia falta das paixões que nunca conseguiu provocar, sentia falta da intensidade por amar, sentia falta de tesão no trabalho. Esse, o trabalho era uma atividade burocrática que Rebeca Monteiro realizava todos os dias das oito da manhã às cinco da tarde e era bem de acordo com sua imagem, de uma personalidade igualmente burocrática e morna. Quando chegasse o dia vinte e um de dezembro Rebeca já tinha planos. Não iria abandonar o emprego, certamente, mas faria algo diferente, algo intenso. Algo que mexesse com as emoções adormecidas desde sempre. Emoções, Rebeca até chegou a esquecer o que era isso. Por vezes se achava incapaz de sentir qualquer coisa. Não que não sentisse compaixão pelo próximo, pelos meninos que vendem doces nos sinais de trânsito, ou os velhinhos que são jogados ao chão pela velocidade com que os motoristas de ônibus dirigem. Esse tipo de “emoção” ela sentia, mas já eram coisas tão banais que Rebeca percebeu que passaram a fazer parte do ritual burocrático-administrativo vivido por ela todos os dias. A ideia de sentir seu corpo se arrepiar pela incerteza de uma promessa, ou de um olhar devorador de um estranho lhe faziam acreditar que havia uma identidade escondida de “Rebeca”. 

Ela não queria apenas esse tipo de emoção, não queria a compaixão, nem a sua nem a de outros. Ela queria ser capaz de levar um homem à loucura, ter o simples prazer de desprezar um canalha, andar na rua e ouvir um assobio vindo de uma construção. E pensava “no fundo, sou uma mulher simples”. Simples demais. Tão simples que não percebia a insanidade de se desejar tais coisas, que não percebia que sua busca era para além do desejo. Era uma descoberta.

Rebeca nunca tinha se dado conta de como sua existência andava a passos lentos, não por falta de acontecimentos ou escolhas, mas por escolhas – que levavam a acontecimentos – fáceis. Ela sempre escolheu não por um sonho, mas pelo que se apresenta primeiro, pelo que se apresenta sem dificuldades. E agora Rebeca percebia que seu mundo, este mundo de escolhas fáceis e de existência morna, estava prestes a acabar. Por outro lado, ela até preferia que o mundo explodisse verdadeiramente, e que não deixasse vestígios de nada, afinal, ela mesma, Rebeca Monteiro já estava prestes a deixar de existir, e não ficaria nenhuma lembrança sua. 

O tempo passava, e o fatídico dia se aproximava. O apito final soou e Rebeca |


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Enquanto isso, as ondas...


Enquanto não penso, ou não posso entender as sensações que me ocorrem para escrevê-las aqui, reproduzo o que Virginia Woolf soube dizer sobre mim melhor do que eu mesma poderia fazer.



" - A verdade é que preciso do estímulo de outras pessoas. Sozinho diante do fogo apagado, inclino-me a ver as partes fracas de minhas histórias. O verdadeiro romancista, o ser humano perfeitamente simples, poderia continuar imaginando indefinidamente. Não integrarias as coisas numa só síntese como eu. Não teria essa sensação devastadora de cinzas frias numa grelha apagada. Uma cortina cerra meus olhos. Tudo se torna impenetrável. Cesso de inventar.”

“- Quero lembrar. De modo geral, foi um dia bom. A gota que se forma no telhado da alma a cada noite é agora redonda e multicolorida. Houve a manhã, ótima; houve a tarde com seu passeio. Gosto de paisagens com torres sobre campos cinzentos. Gosto de olhar por entre os ombros das pessoas. As coisas não pararam de entrar em minha cabeça. Sentia-me imaginoso e sutil. [...] Agora, contudo, quero fazer a mim mesmo a indagação final, sentado diante desse fogo acinzentado, com seus promontórios nus de carvão negro: qual dessas pessoas sou eu? Dependo sempre do ambiente. Quando digo a mim mesmo: ‘Bernard’ – quem aparece? Um homem fiel, sardônico, desiludido, embora não amargo. Um homem sem idade ou posição social. Eu apenas. Agora, é ele quem pega o atiçador e remexe as cinzas de modo a caírem como chuva através das grades. ‘Deus’, diz a si mesmo, observando as cinzas caindo, ‘que sujeira!’. Depois, acrescenta, lúgubre, mas com consolo: ‘A sra. Moffat virá limpar tudo’. Imagino-me repetindo essa frase muitas vezes a mim mesmo, enquanto sigo a matraquear e a fazer estrépito pela estrada da vida, batendo ora de um ora do outro lado da carruagem. ‘Ah, sim, sra. Moffat virá limpar tudo’. E agora, para a cama."


Virginia Woolf, As Ondas. Tradução: Lya Luft. Editora Novo Século.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Lembranças da caverna


A cada dia que passa vejo lembranças sumirem como uma fogueira que se apaga depois de arder a noite inteira. O tempo caminha e esquece-se de mim, e eu esqueço que ele corre, esqueço que ele passa apressado por nós. E eu vou passando sem sorte pelas pessoas.
Deixo e sinto saudades.

- Tempo?! Como frear-te?
- ...
- Não, tu passas, me consomes, mas sempre estás por perto. E os outros?
- Os outros se foram comigo. Os outros se foram com as tuas lembranças.

Já não me lembro de muitas das risadas que dei, das lágrimas que deixei cair e do cansaço que muitas vezes me paralisou; não lembro dos conselhos que ouvi, das conversas banais na escola, das confissões. Não lembro dos rostos lisos, da pele jovem cheia de espinhas, das rugas dos meus avós. Não lembro da língua frouxa, dos meus erros, da canção preferida em 1996, ou 1999. Não lembro como fiquei assim, instável, esquecida, volúvel...

Nem sei se eu já era assim...

Não lembro das feições dos almoços de domingo. Não lembro das broncas, não lembro dos cheiros, não lembro de dias perfeitos.

Lembro somente do chão de terra, da mangueira e do pé-de-goiaba no quintal, do sonho mal planejado de uma casa na árvore. Do galinheiro, da horta e do bolo de lama; dos aniversários dos cachorros. Lembro da bicicleta vermelha debaixo da árvore, do pé-de-amora, de Bradock doente, do raio que levou Pingo, do pneu feito balanço e das fogueiras de São Pedro. Lembro da varanda, e da rede onde brincava, do barulho da bomba d’água, do vizinho entregando frutas pelo muro.

Lembro da cocada, do melado e dos biscoitos de milho disputados na escola. Lembro do cheiro de cigarro na camisa, da corrida para pegar o ônibus, do rosto vermelho por causa do vinho, do vento que levou o telhado. Lembro de um segundo atrás o que parece ter sido ontem. Lembro do que parece ter sido dito há séculos. E isso tudo parece que foi muito e que foi há muito tempo, e às vezes parece que eu nem estava lá. 

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Quer saber?


Sabe aquelas coisas que você descobre por acaso?
Aquelas coisas que se sente e não se diz a ninguém, não se pode dizê-las.
Não se pode explicar como surgem, o que são.
Nem eu mesma sei o que elas significam exatamente.
Nem eu mesma sei se elas se encaixam em alguma forma de pensamento anterior, semelhante; alguma sensação já conhecida.

Sabe aquela angústia que surge de repente?
Se não, não sei se mereces “parabéns!” ou “que pena!”.
Sabe aquela confusão de sensações que te faz querer chorar e rir ao mesmo tempo?
Aquela sensação de que tudo basta, de que a vida basta e se é feliz por isso? Sem pensar no quanto o seu trabalho é frustrante, o quanto você se sente incapaz diante dos outros, sem pensar que você, às vezes, é invisível.
Nada, nenhum desses pensamentos ocorre, só que você existe, de algum modo e sabe-se lá porquê...
E de algum modo isso é bom.

Sabe aquela sensação de “fiz uma coisa boa hoje”? Sabe a sensação contrária?

Sabe aquela voz que fala baixinho dentro da sua cabeça, dizendo que direção você deve seguir, que escolhas fazer, para ter cuidado e atenção?
Ela não me abandona.
Está sempre por perto.
Eu é que já me acostumei tanto com a presença dela que nem sempre dou atenção.
Sabe aquele dia em que dá vontade de abandonar tudo?
O tudo que você acha muito e que, no final das contas, nem sabe o quanto vale; pode não valer nada, para ninguém.

Sabe a solidão?

...
Desenho: Elaine Pinto
...

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Dentro da caixa


Foi a primeira dose. Fugi dela o quanto pude. Fugia de mim mesmo na direção de monstros perdidos na minha cabeça. Fugia deles. Esbarrei naquela esquina com alegrias, choros e efemeridades. Subo as escadas, encontro a diversão.

Uma partida de sinuca. Nem mesmo me dou conta do quanto já perdi esta noite. Não importa, me faz bem, me faz esquecer. E esquecer por instantes ainda me faz bem. É como se eu dormisse e meu corpo não sentisse. Mas a noite acaba, e a sinuca também. Volto sozinho, embriagado e feliz. Feliz por esquecer, feliz por ter sido esquecido. Só o tempo não se ausenta de mim. Talvez por isso eu continue.

Seguir em frente? Não. Isso não é para mim. Continuar não é o mesmo que ir adiante. Continuar é ser deixado à vida, ser levado pelas ondas, voar com a tempestade. A noite acabou. A sinuca também. Perdi. Tudo passou e em mim não resta nada. Só uma caixa vazia. Tudo foi levado, só ficou uma caixa.

A caixa não é importante. Nem eu, nem ela. E o que há nela? Nada, está vazia. Está parada. Então por quê deixá-la? Para que, finalmente, me importe com algo. Mas, talvez não esteja vazia. Não foi aberta. Não pode ser aberta. Entregaram a caixa aqui, com meu nome. É para mim. Há tempos está ali parada. Lembraram-se de mim. Mas quem? Lembrou-se de enviar algo para um solitário.

Agora não sou mais um solitário. Somos eu e a caixa. A caixa é meu Wilson.

Aos poucos, com poucas doses diárias, me sinto anestesiado. É bom, acho.não sinto nada: dor ou amor, calor ou frio, alegria ou tristeza. E como pode isso, Wilson? “Não pode, está errado” responde meu alter ego. Não posso, isso está errado. É quando Wilson se mexe violentamente, vem em minha direção como se tivesse sido arremessada. Para me atacar, me ferir. Mas some, na escuridão.

A luz foi cortada. Não encontro nada nessa escuridão. Mas sei da caixa. Ela está lá, em algum lugar. Ouço seus passos pela casa, atrás de mim, mas não a vejo. Quando chega o dia e um pouco de luz entra pela janela, vejo a caixa, imóvel, lacrada. Pisco os olhos, a caixa some.

Foto: Elaine Pinto

terça-feira, 29 de maio de 2012

Quando acordei...


Quando acordei, lembrei-me do sonho. Um sonho estranho. (Às vezes acho que já poder sonhar, ver e fazer coisas enquanto durmo, é algo incompreensível. Mas sonhamos ainda assim).
Foi um sonho longo. Muitas coisas aconteciam e tudo se misturava. As pessoas se misturavam umas nas outras e se transformavam numa terceira, pessoas que não conheço de verdade mas isso era completamente natural.

Chorei muitas e muitas vezes, e me via sempre só.

Estava na praia, no mar, nadando, até que não consegui mais, porém eu não afundava. As outras pessoas não me viam, e eu não conseguia sair do mar. Fiquei abandonada por horas, dias, sob o sol quente do verão. A consciência nunca me abandonava, o que não sei se é um privilégio ou um castigo. Sabia o que estava acontecendo, percebia que pessoas passavam ao meu lado. Eu as reconhecia. Fiquei tanto tempo com o sol sobre minha cabeça e meus olhos que não conseguia distinguir as pessoas das outras coisas.

Eu via tudo.

Penso que via.

E ninguém sabia que era eu ali, que estava imóvel, que estava indo e voltando com o bailar das ondas. Desisti de tentar sair. Desisti de tentar acordar os outros.

Foto/Edição: Elaine Pinto

Quando acordei, o sal parecia estar em todo meu corpo, eu parecia ter lutado a noite inteira contra as ondas, contra as algas. O sol deixou suas marcas na minha pele e eu levantei como de uma ressaca.

Finalmente saí daquele mar de ondas fracas, que vinham e voltavam com constância, que me levavam de um lado para o outro, e eu sem ter onde apoiar. E eu sem ter como sair. Deixei-me ficar. Deixei-me levar por essas ondas inoportunas, inofensivas. Deixei-me prender pelas águas infinitas, pelo calor, pelo brilho da luz do sol.

Era o dia perfeito, não fosse a ausência da liberdade.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Quero ser um grão


Quero ser grão de areia. Quero ser uma pedra que deita na praia. Quero sentir o vento. 
Quero ir... Abrir as asas, sonhar mais alto, decidir. Desistir, às vezes. Talvez seja mesmo hora. Hora de pensar, de plantar e de colher como diz o provérbio. Hora de ficar e deixar passar a tempestade, que me carrega para lá e para cá. 

Foto: Google

E eu nem sei mais como vim parar aqui...

Quero ser grão de areia, misturado no meio do povo, solto, livre, sem marca. Quero ser um grão de areia e ficar perto da concha, ser levada pela água e voltar ao abraço do sol. Quero ser grão de areia, mudo, pequeno, inteiro. 
Quero ser grão de areia e deixar meus irmãos espalhados por aí, seguir com o vento, não voltar naquele tempo atrás. Quero ser grão de areia, leve, sair, confundir, cegar, voltar à primeira praia, à primeira concha, voltar ao castelo.
Quero ser grão de areia porque o chão é feito para mim, porque ali não estou sozinho, porque sou eu e muitos.       Quero ser grão de areia para fazer a trilha, ter o horizonte, chorar sem ser visto.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Promessas

Dezembro, 29

O tempo passa e todos pensam em como as coisas mudam, as pessoas, o trabalho, o clima, a cidade... E chega uma época em que todos parecem querer que as mudanças ocorram imediatamente, ficam estagnados pensando no que deveria mudar em suas próprias vidas, projetando as mudanças, quais os planos para os próximos meses e anos, o que transformar internamente para "abrir os caminhos" da oportunidade...
Num certo momento fazemos promessas ao mundo. Prometemos dar aquilo que acreditamos(e só acreditamos) ser capazes de realizar, e desejamos uma retribuição mais alta em relação ao que pretendemos fazer. Nosso esforço é mínimo mas a recompensa que se deseja é a máxima.
O ano começa outra vez. Outro ano, os mesmos anos se repetindo. 



Foto: Google

A cada novo ano que (re)começa, que está prestes a (re)começar, fazemos listas de presentes, transformações, desejos etc. e tal. Este ano decidi, finalmente, começar uma lista também...
Começo a lista em forma de carta porque pretendo enviá-la para mim mesma daqui a um tempo, vou esperar uns anos e ver se alguma coisa mudou, se algum desejo se realizou, se eu sobrevivi. O problema é que sempre que tento começar uma lista, imediatamente me vem a sensação de algo estar faltando, ou já ter a certeza de que não vou realizar os tais desejos, as prometidas mudanças...
1- Não farei  promessas para o outro. 2- Não direi que estarei lá se não sei se poderei. 3- Direi que vou fazer e, tentar, fazer o melhor que posso. 4- Não vou desistir ou abandonar algo no meio do caminho. 5- Contribuir para um mundo melhor.

Eis a lista pronta: a sensação de que algo falta já me absorve, e a de fracasso também. Enfim, o novo ano se aproxima e preciso meditar para aguardá-lo e realizar minhas transformações a tempo...

segunda-feira, 5 de março de 2012

Nuvem e Tempestade

Nuvens negras volta e meia rondam minha cabeça. Em geral elas anunciam uma tempestade que se aproxima. Tempestade rápida, mas que pode provocar alguns desastres e tragédias, como ocorre geralmente.
A de ontem eu não chamaria dessa forma. Era uma nuvem solitária, persistente, carente, teimosa! E apesar de qualidades instigantes não revelava a tempestade que eu esperava, mas uma ventania, só para sacudir os parcos conceitos de antes.
Em geral não gosto de tempestades. Uma tempestade deixa tudo muito mais nervoso, tenso, fora do lugar, cada instante é agora e nada. E tudo. Tudo o que poder vir a ser, tudo o que deixou de ser. Hoje eu não queria nova tempestade, mas aquela nuvem parecia me perseguir. Ela rondava, rondava, deixava cair uma gotas de chuva e, não satisfeita por não ter atenção, enviava gotas cada vez mais fortes, era uma necessidade absoluta de dizer: "Ei, estou aqui! Olhe para cima!".
Foto/Edição: Elaine Pinto
Olhei. Olhei e continuei a caminhar. A outra parte do céu estava em azul claro, e o vento bagunçava os cabelos, a cabeça e as ideias. E quando as ideias cansaram de procurar o caminho de volta, onde estavam, o melhor a fazer era observar e esperar que a tempestade chegasse. 
Não chegou, mas vai chegar. 
Ela vai chegar de repente, como uma nuvem cinza, sem se anunciar, e, também sem qualquer propaganda, vai fazer a chuva cair para que cada ideia se encontre de novo, ou num lugar diferente. 


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Dá Preguiça

"Dá preguiça!"

Eu quero um dia de folga,
Uma rotina nova,
Um dia para não pensar.
Eu quero é ficar à toa,
Numa boa, sem angústia,
Sem trabalhar.
Eu não quero sair da cama,
Não quero sair daqui
Não quero preocupar.

Vou ficar um dia inteiro assim,
De preguiça, metida,
Falando e pensando o que vem
Sem perguntar o que tem...

Amanhã vejo outra vez
Se isso sim eu posso um dia
Ter ou pensar.
Dá preguiça de lembrar
Que amanhã vai ser igual:
Mesmo desejo, mesmo sonho.
Vida normal.