Choveu a noite inteira. Os planos para o
domingo diluíram-se com a tempestade e os cinco amigos ficaram sem saber se o
encontro combinado há semanas aconteceria realmente. Não se viam com
freqüência. Mas quando acertavam essas ocasiões os momentos juntos eram marcantes.
Era apenas uma desculpa para brindarem a presença uns dos outros.
O encontro, como seria? O piquenique no
domingo foi decidido em correspondências eletrônicas nas últimas semanas, a
única comunicação possível nestes dias de trabalhos e família que exigem
urgência. E agora teriam de mudar a decisão.
Está fora de questão para hoje, não é agradável
banquetear-se com a grama e a terra molhadas. Ah, pena, um dia perdido. Mas
quando se encontrariam novamente? Quando filhos, maridos e teses permitissem. Mas
a depender das teses, não seria logo. Seria melhor deixar o encontro
para a próxima semana e esperar que o sol os agraciasse com sua presença ou se
encontrarem mais tarde, num lugar igualmente acolhedor e celebrarem ainda
assim?
Decidiram em breves mensagens coletivas
pelo celular que se encontrariam no quartel general, o lugar de sempre: o
apartamento do único casal sem filhos do grupo. Um apartamento antigo numa
parte tranqüila da cidade que fica numa ruazinha estreita no centro, tem uma
sala ampla, um gato recém chegado a se esconder dos visitantes, e algumas
garrafas de vinho levadas pelos convidados. Era um banquete e a verdade era
também uma das convidadas.
O local foi decidido na última hora, e o
horário também. Combinaram às cinco. Chegaram-se todos. Não pontualmente, mas
isso é bastante comum nos encontros entre os amigos. Mesmo com alguns atrasos a
noite correu bem, como era de se esperar. E por algum tempo as demandas de
trabalho concentraram a temática da conversa, mas logo foram adiadas para a
segunda-feira essas inconveniências.
O que seria um piquenique no final da
manhã se transformou numa noite de banquete divino. E este era um bom momento
para esquecer que o domingo já estava terminando e teriam de enfrentar a
segunda-feira, agora com mais ânimo, ou quem sabe com uma ressaca – para
lembrar-lhes de que, pelo menos, o dia anterior não foi em vão.
As comidinhas e os vinhos regavam esse
encontro. O domingo não foi como o planejado, seguiu outro curso. Conversas e
risadas desaceleravam a noite que passava e ninguém se dava conta. Ninguém se
preocupava naquele momento. Nenhum deles
olhava para o relógio procurando uma desculpa para ir, não pensavam nas horas,
na rotina, nas obrigações.
A chuva cessou, mas ainda não dava
espaço para o luar. Os amigos chegaram-se aos poucos até a varanda. As folhas
das plantas ainda pingavam, tinha cheiro de coisa nova e terra molhada. Sentaram-se na varanda. Ficaram ali a observar
a rua e o asfalto ainda molhado, foram envolvidos por uma leve corrente de
frio. O abraço suave do orvalho, as bochechas quentes, os lábios rosados, tudo
isso os envolvia.
Não precisavam dizer tudo, dizer o
quanto que se amavam, estavam ali somente, eram os melhores amigos brindando à
vida e ao amor. Falavam sobre o tempo. As vozes baixas acompanhavam o ritmo da
noite e das nuvens que dançavam sobre eles; o friozinho da noite os abraçava naquele
instante revelando que as horas não foram sentidas naquele domingo. Não tinham
pressa. Contemplavam o relento da noite procurando a beleza e a razão de todas
as coisas. Estavam repletos.
Porém, a segunda-feira começa a dar
sinais de chegada e mesmo a noite irresistível não consegue pará-la. Ei-la: é
hora de irem todos, hora de voltarem para os maridos e filhos e, quem sabe, para
as teses. As taças, os guardanapos, as garrafas, os talheres voltarão para seus
lugares quando a luz do dia chegar, não agora.
*
João não dormiu ao chegar a casa, não se
importava com o que deveria fazer quando o dia chegasse. As tarefas, o trabalho
que sempre lhe chamava logo cedo, nada conduziu João para a cama. Ele queria
ver o sol nascer. Poucas vezes fazia isso. Riu sozinho quando se deu conta da
loucura que planejava. Largaria tudo, pelo menos hoje.
Foi arrebatado. João se lembrava da
noite que passara com os amigos, de toda a vida que eles despertaram. Abraçou-se
a um lençol, encostou a cabeça na janela e observava os carros e ônibus que abriam
a avenida para mais um dia de outros. Quando viu que o sol se aproximava
sentou-se no sofá para escrever.
João piscava os olhos, a noite o vencia.
*
O dia já desperta e com ele as
obrigações, o café forte, o remédio para curar a dor de cabeça. E cada um, do seu
lugar, no seu tempo, sai de casa outra vez. Desta vez para outro ritual, o
burocrático e sem graça, anestésico. A segunda-feira passa, e os cinco enófilos
se distanciam cada vez mais da noite anterior, consumidos pelas tarefas do dia,
quando são lembrados por João, através de uma longa mensagem por email, do
quanto a reunião na noite anterior foi bela e importante.
A embriaguez do domingo retorna.
João, o mais jovem a se juntar ao grupo,
a peça que faltava. E que a partir de agora não voltaria mais. Foi a última
mensagem de João. Mensagem pronta, proposital e que espantou a todos com
palavras tão bonitas sobre o significado daquele encontro para ele. João se
entregou. Mas não tinha importância só para ele, tinha para todos, e com aquela
mensagem cada um, do seu lugar, percebeu isso.
O telefone toca, não é João, ele não é
mais, ele quis e decidiu assim.