Meu caro amigo Bernard,
Fiquei muito feliz em receber notícias tuas. Sinto sua
falta. Sinto falta das nossas conversas de volta para casa, quando viajávamos
daquele antigo trabalho que, com todas as contradições, nos ensinou e mostrou
que fazíamos algo errado. E por isso se tornou um castigo.
Pegávamos o ônibus já tarde da noite para modestos
trabalhadores e atravessávamos a baía, pela ponte com suas luzes de todos os
lados, os faróis dos carros na pista oposta, as luzes dos barcos logo abaixo
nas águas escuras, e as luzes dos prédios e das favelas ao longe. A gente da
cidade que movimentava a roda do progresso.
Era delicioso ter alguém com quem dividir essas observações.
E nos espantávamos ao observar todas aquelas luzes, e imaginar quanta gente
dormia em suas casas, barracos, quantos ainda iam para casa, quantos saíam para
trabalhar... Aquelas luzes, ai, me dão certa nostalgia desde aquele tempo. Desde
que meu caminho de volta teve de ser feito só. Por aqui o trabalho continua, e o
castigo também. E o caminho com suas luzes e sua gente.
Só o meu companheiro de ironias é que falta.
Li tua carta no caminho de volta para casa, e fiquei
emocionada. Tuas palavras me fizeram companhia na noite passada, até que eu retornasse.
Tuas palavras e as luzes distantes.
Mas diga como estão todos?
Mande lembranças a Virginia, sinto que ela está sempre por
perto, e é como se ela soubesse mais sobre mim do que eu mesma. Ou, quem sabe
ela saiba dizer melhor do que eu o que eu penso que sou. Você acha que é mentira
minha isso? Deixa p’ra lá, no fundo só quero os aplausos para os arroubos que
cometo, reconhecimento... As vaias eu
dispenso, nisso sei que sou boa.
Como está o tempo por aí?
Aqui a primavera começou não faz muito, e às vezes nem
parece que ela chegou. Choveu muito nos últimos dias, e você sabe como eu fico
em dias chuvosos. Eles desenham o estado da minha alma. Procuro os monstros
escondidos todos, eu os encontro e liberto e silencio uns e outros. Catarina
anda calada ultimamente, nos distanciamos nestes tempos. Ela não entende que o
tempo passa diferente para cada um. Mas eu fico triste com isso, não gosto de
ficar longe dela.
Enfim, a primavera chuvosa traz à tona todos os desejos que
é para lavar a alma mesmo.
Fico por aqui, aguardando novidades das terras arenosas. Dê lembranças
a todos.