domingo, 18 de novembro de 2012

Carta para Bernard


Meu caro amigo Bernard,


Fiquei muito feliz em receber notícias tuas. Sinto sua falta. Sinto falta das nossas conversas de volta para casa, quando viajávamos daquele antigo trabalho que, com todas as contradições, nos ensinou e mostrou que fazíamos algo errado. E por isso se tornou um castigo.
Pegávamos o ônibus já tarde da noite para modestos trabalhadores e atravessávamos a baía, pela ponte com suas luzes de todos os lados, os faróis dos carros na pista oposta, as luzes dos barcos logo abaixo nas águas escuras, e as luzes dos prédios e das favelas ao longe. A gente da cidade que movimentava a roda do progresso.
Era delicioso ter alguém com quem dividir essas observações. E nos espantávamos ao observar todas aquelas luzes, e imaginar quanta gente dormia em suas casas, barracos, quantos ainda iam para casa, quantos saíam para trabalhar... Aquelas luzes, ai, me dão certa nostalgia desde aquele tempo. Desde que meu caminho de volta teve de ser feito só. Por aqui o trabalho continua, e o castigo também. E o caminho com suas luzes e sua gente.
Só o meu companheiro de ironias é que falta.
Li tua carta no caminho de volta para casa, e fiquei emocionada. Tuas palavras me fizeram companhia na noite passada, até que eu retornasse. Tuas palavras e as luzes distantes.
Mas diga como estão todos?
Mande lembranças a Virginia, sinto que ela está sempre por perto, e é como se ela soubesse mais sobre mim do que eu mesma. Ou, quem sabe ela saiba dizer melhor do que eu o que eu penso que sou. Você acha que é mentira minha isso? Deixa p’ra lá, no fundo só quero os aplausos para os arroubos que cometo, reconhecimento...  As vaias eu dispenso, nisso sei que sou boa.
Como está o tempo por aí?
Aqui a primavera começou não faz muito, e às vezes nem parece que ela chegou. Choveu muito nos últimos dias, e você sabe como eu fico em dias chuvosos. Eles desenham o estado da minha alma. Procuro os monstros escondidos todos, eu os encontro e liberto e silencio uns e outros. Catarina anda calada ultimamente, nos distanciamos nestes tempos. Ela não entende que o tempo passa diferente para cada um. Mas eu fico triste com isso, não gosto de ficar longe dela.
Enfim, a primavera chuvosa traz à tona todos os desejos que é para lavar a alma mesmo.
Fico por aqui, aguardando novidades das terras arenosas. Dê lembranças a todos.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Só às vezes


- “Onde deixaste a caneta, garoto?”.
-  ...
-  “Onde foi parar o telefone? Eu, hein, parece que essas coisas andam sozinhas...”.

Cansada de procurar respostas e outros objetos pela casa, senta-se no sofá e joga as pernas para o alto. Um som estranho começa a se fazer presente, olha ao redor e não há ninguém. A fadiga provocada pela busca interminável ao telefone não lhe permitiu compreender aquele som, que ora aumentava ora diminuía. E a senhorinha, apesar de cansada, não parava de se mexer no sofá, talvez fosse incômodo com aquele soar inconstante.

Incomodada com o som, com o sumiço do telefone, com o neto – que ignorou sua pergunta e saiu para o quintal a brincar com os carrinhos –, e com um caroço que surgiu de repente no sofá, ela se levantou. Em seguida deu uma boa olhada naquilo que aparecera sem convite e fazia-se dono do seu cantinho no sofá. Um controle remoto. É, não era o telefone tão desejado, mas era, ao menos, a causa daquele barulho inconstante e insuportável.

“Ah, isso eu não procurava, mas ainda bem que achei”, disse e saiu. Concentrada na busca pelo telefone foi até a porta da varanda: “Ô, menino, você não viu o telefone, não?” ... A voz fraca não chegava aos ouvidos do garoto que balançava os carros de polícia e ambulâncias para dar realidade à sua brincadeira de desastres no trânsito.

Com o olhar perdido, fica parada na frente da porta, os braços apoiados na soleira, cruzados para trás. O menino brincava feliz. Cada um no seu mundo. Cada um esquecendo-se do que havia lá fora. A senhorinha só olhava, não pensava em nada. Não pensava mais no telefone, não pensava no controle remoto, no aparelho de som, na desatenção do neto. Ela só olhava, e naquele instante sentiu-se livre, sentiu-se jovem, sentiu-se cheia de vontades. Só com um olhar. E só às vezes olhava daquele jeito.

Depois que a vida foi seguindo, e as vontades deixadas de lado, ela não lembrava mais como era ter aquele olhar, como era ver o mundo assim sem interesse. É o mundo mais bonito que ela já viu. E é diferente desse mundo normal. Ela olhava às vezes assim e se perdia, perdia os pensamentos e os deveres. Só depois de se dava conta de que estava imersa nesse mundo de horizonte.

Então o telefone toca, e ela sai do transe. Volta a se encontrar no mundo normal. Volta a ser a senhorinha de sempre. Quem sabe o que lhe passou pela cabeça naqueles poucos instantes? O telefone toca. Toca, e não para. Insiste. Ela desperta e sai apressada em busca daquilo que tinha se transformado no objeto principal de sua tarde. Ao encontrar o telefone se pergunta, frustrada:

- “Me diz, meu Deus, por que é que eu faço essas coisas?”