segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Companhia no almoço (ou, quando os macacos chegam)


O texto a seguir é a reprodução – o mais fiel possível – de uma conversa entre tio e sobrinha.

“O dia começou normal”.
“Normal? O que é isso, tio?”
“É quando algo é sempre do mesmo jeito”
“Ahn, continua...”
“Melhor voltar ao começo. Bem, quando a gente viaja cada dia é diferente do outro. Coisas diferentes acontecem o tempo todo”
“Então os dias de viagem são inormais?”
“Você quis dizer: Anormais?”
“Mamãe falou que o contrário de responsável é irresponsável, então o contrário de normais é inormais!”
“Faz sentido, minha querida, mas desconheço essa palavra, acho até que não existe. O certo é Anormais!”
Silêncio.
“Bem, na minha última viagem foi tudo muito normal, cada dia igual ao outro. Tudo muito calmo. A começar pelas refeições: sempre no mesmo horário, e eu estava lá pontualmente”
“E o que é pontualmente?”
“Algo que é pontual”
“Ahn”
“Eu estava sentado no mesmo lugar onde fazia as refeições todos os dias, os sete dias em que estive lá”
“Que chato”, não se contentou a sobrinha.
“Como?”
“Ah, tio, é chato fazer a mesma coisa do mesmo jeito sempre, não é?”
“Talvez (pausa). Mas, como falei houve um dia em que as coisas começaram diferentes. Primeiro, havia sol, quando todos os outros dias só chovia. E o sol estava agradável, morno, disposto a fazer companhia o dia inteiro. Depois, uma das reuniões foi cancelada, o que me deu tempo para ir passear um pouco ao redor. O lugar era muito bonito”
“Um dia você me leva lá?”
“Acho que você não vai gostar de lá”
“Por que não?”
“Não há crianças lá”. Novo silêncio.
“Você quer ouvir o fim da história?”
“É..”
“Eu fui almoçar, mas meu lugar de sempre estava ocupado. Fui me sentar noutro lugar”
“Tinha seu nome?”
“Onde?”
“Na cadeira onde você sentava. Ou você comprou a cadeira?”
“Claro que não!”
“Então não era sua!”
Novo silêncio.
“Mas sabe que foi bom eu trocar de lugar?!”
“Por quê?”
“Porque eu me sentava perto da porta, dos doces. Mas com a troca fiquei perto da janela. E vi quando um macaco desceu por uma corda, pulou numa árvore que estava ao lado da janela, colhia as frutas e as devorava”
“Era grande?”
“Sim, ele comia e olhava p'ra mim, depois pulava para outro galho e pegava outra fruta, voltava para perto da janela e ficava me olhando, parecia me perguntar: 'e você, não vai comer não?'”.
“E o que você respondeu?”
“Eu estava comendo, mas ele era muito mais rápido que eu e terminou antes. Mas não ia embora. Ele me fez companhia até eu terminar o meu almoço”
“Por que você não deu um pouco da sua comida para ele?”
“Porque não pode”
“Por quê?”
“Cada animal come a comida de onde é mais adequado para si. Nós, seres humanos, preparamos nossa comida, os macacos não, eles comem as frutas das árvores”
“Eu ia gostar de ter o macaco como meu amigo. Eu ia dividir minha comida com ele e ele ia me dar uma fruta da árvore”
“Mas eu gostei de ter o macaco como meu companheiro de almoço, é que foi muito rápido, a gente não conversou muito”
“Então você me leva lá que eu converso com ele”.

O ônibus que eles esperavam chegou. Subiram em silêncio e eu não ouvi mais nada.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A Vaga


Um homem passa diante de uma placa com a seguinte inscrição: “Há vagas”. Curioso e decidido a trocar de emprego ele resolve procurar mais detalhes. Entra.
Havia uma pequena entrada, um corredor estreito e comprido; no final do corredor, dobrava-se à esquerda. Lá o homem encontrou uma mulher sentada diante de uma mesa. Séria. Parece não ter visto o homem entrar.
Tudo muito pequeno. Apertado. Incômodo. Sufocante.
O homem pergunta o que é necessário para preencher a vaga. A mulher lhe estende uma folha de papel, não diz nada, sequer olha para ele. Sentindo-se intimidado, o homem pega o papel diz “obrigado” à mulher e sai.
Felizmente ninguém mais havia passado pelo corredor, pois o homem saiu correndo assim que dobrou à direita. Estava assustado, a mulher tinha uma aparência severa demais, e o ambiente todo muito fechado quase o deixou sem ar.
Quando estava na rua, decidiu tomar um café e ler o que havia na folha. Parou, sentou, bebeu água e pediu um café. Pegou o papel dobrado na camisa e surpreendeu-se ao ler: “Venha fazer parte deste grande empreendimento!! Se você é observador, gosta de caminhar e é independente, junte-se a nós!!”. “Só isso?” pensou o homem. Ainda sem acreditar no que lia, o homem decidiu se candidatar a uma vaga.
Quando voltou ao lugar sufocante e disse que queria se candidatar à vaga, a mulher sorriu-lhe e disse: “A vaga é sua”. Ela se levantou e abriu uma porta. Espantoso! Havia uma praia maravilhosa do outro lado. (Daquelas que a gente só conhece pelos programas de viagem ou filmes).  Ainda sorridente, a mulher voltou-se para o homem e disse-lhe: “Agora, seu trabalho é observar o mar, caminhar pela areia e pescar para sua sobrevivência. Boa sorte!”.
O homem entrou pela porta. A mulher fechou a porta atrás dele.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Retratos


De repente a gente olha para o passado e se dá conta de que já não há memória alguma. As coisas, os objetos, as lembranças, as festinhas, os acontecimentos, os jeitos, os gestos. Tudo isso fica para trás, sem registro. As lembranças se confundem com algo imaginário, com fantasia, com algo que, no momento da lembrança, parece não ter sido.

Foto: Elaine Pinto
 - Às vezes me esforço por lembrar as coisas, queria mesmo era ter uma gaveta dentro da cabeça, porque quando fosse procurar, saberia onde encontrar.
- Por isso gosto das fotografias, elas me fazem lembrar, me levam de volta àquele instante...
- Não  fazem lembrar nada. Nos esforçamos, é verdade, mas esse esforço pode nos levar a uma ilusão, e não ao que aconteceu de fato.
- E o que aconteceu de fato?
- Não sei, já não lembro. Olho as fotografias mas não estou lá. Olho os objetos, os bilhetes, os livros, o vinho..., mas nunca tive nada disso. Eu sei que hoje esses objetos habitam toda a casa, estão espalhados pelos armários e gavetas como memórias de algum dia...
- O dia que você esqueceu?!
- Não, o dia que eu já não tenho certeza se existiu.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Silêncio na sala

Silêncio.

O barulho do relógio ao fundo, e ninguém. Não há ninguém. Ninguém aparece. Lá pelas tantas surge uma alma pedindo uma informação qualquer. – Será que foi sério? – Quem pode saber?

Mais tempo de espera. Minutos. Horas passam. E o relógio. Não, as horas não passavam de fato. O telefone toca. Uma mensagem de serviço telefônico.

“Não, isso não atrapalha agora”. Sem atenção, deixa o livro cair, página vinte e oito, e “por que será que ninguém se importa?”.

As bolsas, os cadernos, as pastas e as canetas. Tudo espalhado sobre a mesa. Todo o material necessário. Mas de que servia? Nada, pensou. Ninguém se importa. ”E se ninguém se importa, não sou eu quem vai se importar”.

De repente um vulto para ao lado da porta. O olhar faz a pergunta cruel: “onde estão todos?”. Olha ao redor novamente. E vai embora. Novo e longo silêncio. Até que finalmente começa a ouvir burburinhos pelo corredor. Hora de ir. O prazo terminou e ninguém apareceu.

Como sempre, aliás!

Arrumou as coisas que estavam sobre a mesa. Preparou-se. Preparou-se para voltar amanhã. Voltar para o silêncio de todos os dias.